O passado todo está aqui

o passado todo está aqui,

neste momento,

o antigo desejo desperto

a flor que se abre

e que esteve sempre aberta

nas coisas visíveis e invisíveis

nos cheiros resvalando à melancolia

na desordem das estações

na neblina adormecida sobre os campos

adormecidos

na solidão eternizada

dos anacoretas

e as descobertas

e os segredos

dos seus solitários mundos

naquela dor olvidada

e que renasce e nos consome

na face tranquila das lágrimas

o passado está todo aqui

em cada escolha que faço

desmanchando o homem que sou

e seus ideais

e dos retalhos finais

refaço-me

percorro novos caminhos

tão antigos

pressentidos e antigos caminhos

ainda habita em mim o menino que fui

(que sou e sempre serei)

que sonha no passado

e fala no presente

dentro do futuro do homem que sou

e nos sonhos vislumbra o porquê

que me anulam

e lanham-me

e, lanhado, entro no mar

e banho-me longamente de água e sal

enquanto a vida vai dissipando-se ante o engano

dos percursos nos quais me enredo

e me dissolvo como a pedra se dissolve

lenta e inexoravelmente

deixando na vida esta poeira

onde os pássaros vêm banhar-se

nos finais de tarde

espojando-se na mansidão da escuridão

que se desce tépida e lentamente sobre a vida

que vai trespassando e escondendo o mundo

a mostrar-nos a meiguice da noite cálida

tão antiga

e tão presente nos pulsares e nos quasares

nos astros que não dormem jamais

e que vão dizendo a vida

aqui e agora

de todos os anos pra trás