Querida Inimiga

Ela nem estava chorando. Eu jurei a minha vida toda que não choraria nesse momento e apenas por isso permanecia com os olhos secos, mas ela não chorava por outro motivo, de certo deveria estar até feliz por debaixo de seus trajes fúnebres. Não é isso que essas mulheres jovens esperam em um casamento como este? Que o velho morra logo e deixe toda a herança para elas? Talvez ela faça uma festa hoje.

Ela nem estava chorando., Nem sei porque veio ao velório, não duvido nada que esteja feliz com a morte do ingrato ex-esposo. Ela nem olha para o defunto, fica o tempo todo a me fitar, como se estivesse a medir cada uma de minhas reações para comprovar que eu sou apenas mais uma “ biscate gananciosa”. não era assim que ela costumava me chamar? Sob seus olhos a minha tensão aumenta, até as lágrimas ficam presas nos olhos, não consigo nem aproveitar o meu luto

É difícil olhar para o caixão, mesmo pra mim que desejei a morte dele pelos últimos tempos. Agora ele está tão pálido, tão magro, tão sério... cada vez que meus olhos passam por seu semblante eu me arrepio, como se não reconhecesse no defunto o ser que habitou a minha cama por tantos anos, se não fosse ela, eu me perguntaria se vim ao enterro certo

É difícil olhar para o caixão, de pensar que na noite passada ele estava do meu lado, trocando de canal de televisão apenas para me estressar e rir de minha irritação. Agora ele estava tão pálido, tão magro, tão sério.. olho para o caixão e me pergunto se este é este o mesmo homem que acordou hoje ao meu lado ou se esta é apenas mais uma de suas brincadeiras bobas

Ela me olha e nos olhos dela eu me vejo, eu nunca havia pensado no quanto envelheci antes dela chegar, o tempo entre o dia em que o conheci até o momento em que estávamos juntos, ambos dando aula na mesma faculdade há mais de vinte anos, passou muito rápido e eu nem pude senti-lo em minha pele, sabia que estava envelhecendo, mas nunca havia refletido sobre isso. Mas foi quando ela apareceu que eu me olhei no espelho e percebi que o tempo passara, que meus peitos caíram, que as rugas surgiram e mais de 26 kg apareceram em meu corpo. Desde então, tenho me sentido uma sombra de sua juventude

Ela me olha e nos olhos dela eu me vejo, eu sempre fui muito autoconfiante até conhecê-la, quando entrei no mestrado tinha bastante certeza da minha tese e de meu destino como pesquisadora, mas foi quando seu ex-marido terminou com ela para ficar comigo que eu passei a desconfiar. Ela era tudo que eu queria ser quando entrei na faculdade, com suas teses revolucionárias e seu jeito didático e fino de explicar o complicado para o mais simples ouvinte . Em todo o meu relacionamento com ele, eu me perguntava se ele estava comigo apenas pelo meu corpo, enquanto ela seria eternamente a sua grande inspiração. Em todo este tempo eu fui apenas uma sombra de sua ilustre figura, esperando envelhecer para ser abandonada também

O que me dói é que perto do relacionamento dos dois eu sinto que eu fui um nada, passei a vida inteira acreditando que tinha um companheiro, um gêmeo siamês, pois tudo que fiz em 20 anos de relacionamento foi com ele, entramos na mesma faculdade, compartilhamos teses, no mesmo ano nos tornamos professores universitários ,lutamos lado- a- lado contra ditadura, vimos o muro de Berlim cair, vimos a democracia se restaurar, comemoramos o tetra, enterramos amigos em comum, choramos juntos e rimos juntos um trilhão de vezes para depois eu perceber que todo este tempo estive sozinha e que quem estava ao meu lado simplesmente já não se importava e sorria ao lado de outro alguém

O que me dói é que perto do relacionamento dos dois eu sinto que eu fui um nada, alguém que chegou no meio do caminho e vive de restos do que já aconteceu; os dois tinham se conhecido tão jovens, entraram na mesma faculdade, compartilharam teses, no mesmo ano se tornaram professores universitário, lutaram lado a lado contra ditadura, viram o muro de Berlim cair, viram a democracia se restaurar, viram o tetra, enterram amigos em comum, choraram juntos e riram juntos um trilhão de vezes, para depois eu aparecer, uma coadjuvante que nunca será a protagonista, alguém que simplesmente estragou os finais felizes

Olho para ela pela última vez e penso que nada disso faz sentido, resolvo me retirar desse ambiente hostil e deixar em paz o defunto, nem sei porque vim aqui, parece que foi só pra vê-la. Ao partir, olho para ela pela última vez, e fito seus olhos, e por algum motivo não consigo mais sentir nem raiva e ressentimento, sinto inclusive um sentimento fraternal, uma vontade de abraçá-la e consolá-la em sua solidão, mas não faço, apenas me retiro do velório com um estranho sentimento de leveza

Olho para ela pela última vez e penso que nada disso faz sentido, vejo-a se levantar e partir em absoluto silêncio, mas antes de se retirar completamente, ela me fita bem no fundo de meus olhos, e eu não sei porque ela faz isso, mas nesse momento já não consigo sentir apreensão ou culpa, sinto inclusive um sentimento fraternal,, uma vontade de abraçá-la e consolá-la em sua solidão, mas ela vai embora e eu permaneço ajoelhada aqui com um estranho sentimento de leveza