Saudade

Sob a noite fria, talvez imaginária

O músico acariciava as cordas. Na presença dela

O som tilintava metafórico, fazendo vibrar as têmporas

da assembléia.

De súbito ele parou e disse: agora irei recitar um poema

de um grande poeta de nossa era:

Houve um tempo em que seus grandes olhos me olhavam,

Não sabia dizer com que intenção me encaravam,

Mas observa-los era bom e tinha sabor adocicado.

Os dias tantos se passaram, ou talvez anos, ou mesmo décadas,

Pois as páginas de nossa história esvoaçaram ao vento.

Mas não pretendi recolhe-las do chão imundo e junta-las em um caderninho

manchado pela chuva. Não saberia dizer onde ele está.

Dizer não me vale, pois sua pele me fazia corar, e nos meus sonhos

fazia-me navegar como uma água-viva por entre os corais da costa.

Não há tempo para queimar capítulos imperfeitos ou voltar atrás

e refaze-los.

Que imperfeição há no amor se imperfeitos são os homens que não sabem por infinitas vezes reconhece-lo?

E então o músico, produzindo um som imperfeito, fez surgir cores que tingiram a fumaça dos cigarros que pairavam no ar fechado.

Você pode acreditar que essas lágrimas que escorrem pelo meu rosto

são lágrimas de saudade. Mas essas lágrimas são lágrimas de compreensão.

Lágrimas que me fazem ver que a solidão pode ser entendida como uma caixinha

de música,

Que quando aberta nos faz admirar a bailarina que dança

solitária

sobre o espelho. Nunca realmente sozinha.

O espelho reflete seu próprio reflexo.

Me faz indagar: o que há então por trás do espelho?

E você traga apavorada seu licor de maçã

E senta em fileiras cada vez mais distantes,

Mas eu não grito os versos de minha música. Intimista.

Sua imagem é apenas o reflexo do meu reflexo. Refletida imaginária

vulgar ou imaculada, presente ou distante.

E os momentos nos escolhem.

A mulher cala-me os olhos,

Os assuntos triviais da boca se esvaem,

O insustentável finalmente se desfaz;

O sábio, preso na própria armadilha, é capaz

De se livrar de eu sofro, eu amo, eu perco.

Uma última vez você me olha, toma seu licor de maçã, mastiga alguns amanhãs do meu bar e vai embora.

Encontrado, o músico inicia em um som abafado das cordas, em um ritmo acelerado, enquanto a platéia deixa o lugar para outros encantados sonhos.