CURTA
puseste em pausa o riso com que havia me recebido como se fosse eu oliver hardy
(de surpresa à tua porta vestindo um terno surrado carregando margaridas murchas)
quando lembraste que daquela velha e conhecida comédia nada de bom havia sobrado
como se o vento nada tivesse levado ou se Dorothy houvesse sucumbido à bruxa
nem me convidaste para entrar tratando de tudo à seco como se eu fosse o caixeiro-viajante
importunando a nobre senhorita com badulaques da indochina e coisinhas de um falso japão
logo eu que naquele momento trazia tudo tão bem decorado que poderia estrear no Municipal
e tive que voltar pela mesma calçada não como Gene Kelly pois não chovia nem havia poças no chão
sentei-me no meio-fio fitando uma tampa de garrafa que refletia sozinha todo o céu estrelado em si
e me senti menor do que ela pois em mim nada brilhava nem as lentes dos óculos nem as chaves no bolso
ali fiquei até me fazer parte daquele chão como se raízes de mim saíssem e procurassem solo no cimento
para que logo me tornasse uma árvore qualquer nesse lugar qualquer nesse mundo qualquer vulgar e insosso
te vi novamente quando abriste a porta para o ilustre desconhecido fantasiado de Humphrey Bogart
e vi também quando o beijaste pensando estar em Casablanca mesmo estando em Vila Maria
mas a paralisia que me tomou me impedia de levantar-me e partir atrás de recauchutar meus brios
ali fiquei misturado à paisagem como um velho outdoor desbotando sob o sol do meio-dia