E assim eu vou vivendo...

E assim eu vou vivendo...

buscando ignorar os dias de inelutáveis e puídas melancolias

tentando reaver os passos e os sonhos que ficaram

do outro lado do rio,

águas fugindo,

barcos aflitos,

inundação

Minha vida já não sabe de mim

tornei-me enredo,

segredo,

degredo,

moita de medo,

cantiga antiga

janela vazia

Ninguém lembra

Só eu cantarolo dentro da noite

para espantar a solidão dos retratos dentro do quarto

assombrado da mente

Assim, nu de mim,

vou invejando no outro o tanto que deixei de viver

sombras de um gesto inamovível e vago

escorrendo pelas grotas do abismo que vai passando

rumo ao passado

sinto-me inabitável

fogo e água

quase vida,

quase fim

Quem é este que me arrosta desde este passado interdito

cego para tanta escuridão?

o passado,

ilha monótona,

chuva rumorejando na penumbra do telhado

não explica a minha vida

vária e insondável

o passado é nostalgia

ave fugidia pousada nos silêncios que,

de tão cansados,

dormem apoiados nas mãos

sonhando saudades inacabadas e um destino abnegado

uma infância sem rio e sem mar onde eu pudesse afogar

o deserto que habitava a casa miúda,

as poeiras vermelhas,

e as memórias bojudas

intumescidas de cansaços e remorsos

O passado não passa,

perpassa

quem passa, sou eu?

Relógios e calendários retalham e mastigam o Tempo infrangível

cospem agonias

A noite indecifrável coloca estrelas e emboscadas na poesia

e lirismo no firmamento

o passado continua aqui,

carrossel,

roda-gigante

circo de lona rasgada

algodão-doce

quintal

segredos embaixo da escada

rumores dentro da solidão dos dias insólitos

a me esperar

há séculos

na contagem irreal dos calendários friáveis

tão humanamente equivocados

olhando pelos meus olhos antigos e descrentes

a elegia das areias paradas

miragem de imorredouras ilusões

de estranho brilho fulgurando

sob a lua prateando e pranteando os sem nome

que nunca dormem

Das areias paradas vem o vento

soprando pela ilha sussurro mofino

vem uma lágrima a escorrer pelo céu

tocando à nostalgia de inefável pureza

cantarolando em mim as minhas canções de menino

E assim eu vou vivendo...

minha luta eu luto sozinho

morrendo horas e medos

o resto mais é o insopitável Destino