Andar sozinho é o caminho que me deram

A madrugada passando...

negro arco distendido

setas mirando agosto

lua cheia

roda d'água que ninguém vê

só eu e você

a madrugada não é rasa nem funda

a madrugada é tímida, rotunda

pé na poça da infância

fogueiras de estrelas

friozinho disfarçando o que sinto

Ao longe um relógio mentiroso,

ofegante,

sufocado pela neblina,

mente as horas

telhados antigos sabem os tempos,

mas nada dizem nem impõem,

a não ser a palavra escura que os recobre

Final de agosto ao redor da casa

sem que, no entanto, a ordem da vida se altere

o sol, insonte, nascerá todos os dias

trazendo os dias

soprando ventos

flores ao acaso

à tarde a noite se levantará do horizonte

dizendo metáforas vermelhas, laranjas,

cinzas ou lilases

engolindo o dia inelutavelmente

seja agosto ou seja abril

ou o nome que se dê ao transcorrer dos momentos

como sempre aconteceu

como sempre acontecerá

diante dos nossos olhos amestrados e desfeitos para enxergar

até que a bomba exploda

ou até o sol convulsamente se apagar

daqui a bilhões de anos

para que serve o tempo, então,

se não para fazer redemoinhos no olhar

e nos cegar para a vida inefável e indefesa

que nos deram para sonhar?

Cachorros latem e lançam alvoroços no ar

que desaparecem

na capenga solidão dos morros

e das marras

nas vielas funiculares

em tantos outro lugares

onde a vida passa vazia e efêmera

a vida passa por passar

Pássaros trinam risonhos

ainda cochilam a noite

cochicham

indagam

ensaiam a melodia

que cantarão durante o dia

oculto nas folhas e nos galhos

das árvores do passeio em frente

filhotes no ninho

mamãe pulsando o inefável afeto

o mundo é um carinho quente

Os jardins dormem molhados

pela aspersão do sereno

liquefazendo a madrugada

despindo perfumes e o tempo

e seu segredo moreno

Um carro passa

levando consigo o instante

outros carros passam

intermitentes

buscam a manhã ainda longe e distante

deixando arruaças e fingidas negaças

No ar músicas cantam e cantam e cantam carências

sons afogadiços

onde ouvir o silêncio?

onde o silêncio andará de pantufas

onde andará o silêncio sem nem ao menos respirar?

(se houvesse o silêncio, mas o silêncio não há)

onde quer que se esteja crepitam sons

a cidade é um ser sangrando sons

antecipando-se à palpitação do coração

reverberando em mim

estranho refúgio sem memória

rebotalho de fantasias

um pote para as tristezas

mil ânforas para as alegrias

a cidade cochila preguiças

parolagens

futricas

enchendo o ar de sombras sonantes

As luzes dos postes amarelam a vida

olanzapínica e carbolítica

como os amarelos que amarelavam

meus pés descalços e o mormaço do sertão

A madrugada

a gaiola

aonde aprisiono e se debatem os meus poemas

que não são nada, não são nada, não são nada...

sentimentos fazendo burburinhos,

imagens flutuam na madrugada

metáfora e arremedo dos medos de um mundo antigo e vário

onde um segundo tem todo o tempo do mundo

onde o mundo pode estar por um segundo

por segundas intenções

por um apertar lento e digressivo de um botão

De vagar não se chega a lugar nenhum

onde as palavras fogem e retinem

esquecidas nas pontas dos dedos

nas teclas do computador

com puta dor

esquecidas simplesmente na dor lancinante

do verso que não se completa

transpassando o gesto e a ausência

Estou só

aqui nesta madrugada que me tirou da cama

e me chama

docemente

para falar de solidões e dos caminhos

Sou só

aqui nesta vida que me tirou de algum lugar

para onde ainda mandam cartas

Há tempos me desgarrei de tantos braços emudecidos

dos falsos sorrisos

das vozes meladas

da insídia e seus enredos

e ando sozinho

por que andar sozinho é o caminho

que me deram

quando atravessei a ponte

e o chão amalgamou-se aos meus pés

e me levou pelas estradas inamovíveis

e incognoscíveis do destino

solitárias e crepusculares

e o nome das coisas eu vou vendo devagar

a divagar distraído

acho quase tudo tão sem sentido

quanta coisa que eu não entendo

quanta coisa me dizendo o que sou

ou o que eu deveria ser

às vezes em sussurros

às vezes aos murros

às vezes em marulhos aflitos

às vezes em culpas

muitas das vezes aos gritos