Passa e fica

Passam as fugas

acobertadas por neblinas quase cegas

Passa o nada

intenso e desigual

por sinal

tão ao natural

Passa o canto dos pássaros

cantando a carícia furta-cor da manhã

em meio aos sonhos ainda dormindo nos olhos

em meio a buzinas e motores

Passa o rio

amassado

trazendo torrões de terra

fantasmas de alguma guerra

retalhos de galhos e nuvens

imprestáveis passados

que também passarão

molhados e assustados

Passa a lua

sem parar, sem parar

a lua tem medo de se quebrar

quando quebra o mar

quando o mar põe-se a quebrar

A palavra que te digo

doída ou alegre

também passará diluída

em pequenas doses

de mentiras possíveis

dentro do próximo segundo

esquecendo-se em esquecimentos

desimportantes

diante do silêncio do mundo

que se põe a escutar

pedaços da eternidade de um só dia

distante das poças sangrando poesia

outra forma cambaleante de agonia

Passa

a minha vida, enfim

em cada texto que escrevo

e vai escorrendo em cada pedaço de muro

onde brotam as primeiras haste de capim

passa, envolta em azul escuro,

esconjuro

a minha vida

assim, assim

Passam as abelhas

brincalhonas

em busca do mel jorrando da boca do sol

trespassado pela sozinhes da manhã

transitória e fugaz

como a ilha infrangível que se desfaz

Passam os pássaros

se embolando às cores maduras do vento

passam empurrando o momento

antes da nuvem recomeçar a se refazer

Assim como passam os poemas

insontes

se embolando na estesia das palavras

antes de começarem a se desfazer

Momentos tristes ou felizes

passam

num caminhar de chuva caindo

manchada de transparências e sedes

levada pelo vento

soprando de dentro da quietude

e da metáfora sempre incipiente da vida

Passa a massa

deambulante

esperando que lhe digam com o que e como deve sonhar

com o que e como deve sorrir

com o que e como deve chorar

quando ficar, quando partir

como e quando morrer sem incomodar

Passam os rumores indissolúveis dos átomos

fusionados na bomba que se despenhará do ar

quando o homem novamente tropeçar

e entender que é chegada a hora de matar

e matar, e matar...

com requintes sarcásticos difíceis de acreditar

Passarão, então,

os corpos dessentidos e exangues

sombras deambulantes de uma guerra que nunca acaba

nunca acaba de acabar

(Você pode se distanciar daquele que o persegue,

mas não daquele dentro de você)

Provérbio Ruandês

Fica a percepção

de que o homem é o que é:

capaz do gesto mais nobre

ou da vileza mais pobre

Fica a constatação de que beleza só não chega

para conter o animal que temos dentro de nós

e do qual não podemos nos distanciar

Passam, esgueirando-se rente aos muros,

meus inimigos com seus punhais de fogo

acordando as labaredas e os meus medos

Fica esta procura de um "Eu"

dentro dos poemas

e dos vendavais

que dizem-me

e que esquecem-me

em letras garrafais

lembranças distraída e banais

Fica na palavra um bocejo dormitando em nossa voz

Na noite fica a janela contente e aberta

vertida para a brisa e o silêncio entrelaçado

à abstração dos sentidos

Fica o alarido de vozes inquietas

fica esta multidão de saudades

esta ausência intocada

fica cada vez mais nada do nada

dentro do nada das idades

Fica,

de tudo que digo,

no poema que reluta em se acabar

esta vontade de fugir

somente sobrepujada

por esta necessidade de lutar