Cidadão não é uma cidade grande

Cidadão,

como pode parecer aos mais afoitos e/ou mais aflitos,

não é aumentativo de cidade

não é o homem atrás da grade

da tela da TV

esperando o amanhã cair-lhe no colo em 3 D

engolindo passivamente as "verdades"

que eles têm para lhe dizer

Cidadão não é a fome

sem nome

brotando do chão rachado

morada do desatino

não é o pai

não é o menino

cujos os passos ouço no drama

na lama

não é o vento calado

não é o rio seco e estatelado

secando com raiva o gado

Cidadão não se faz

bebendo o fel na ponta da lança

cidadão não se faz

com crianças esperança

enquanto a multidão dança

entontecida e falaz

com os artistas em cartaz

Cidadão não é pronome

indefinido

relativo

possessivo

sem posses

sem nada ter

demonstrativo

sem nada para mostrar

interrogativo

sem perguntas a fazer

Cidadão não é agente da passiva

passivo

esperando que o inominado aconteça

e que o mundo renda-se a seus pés

como nos programas que vê

hipnotizado e a mercê

da propaganda sorvida

como parâmetro de vida

Cidadão não é o sujeito da oração

que de oração estamos fartos

cidadão é predicativo

ligando o pensar aos atos

Cidadão não é sujeito oculto

atrás dos medos

que vai ao culto

e carrega o terço entre os dedos

a bíblia embaixo do braço

e desanda em ladainhas

de frustração e cansaço

a escamotear divinos segredos

e mistérios da criação

Cidadão não é sujeito indeterminado

ao ostracismo fadado

sem saber se é ou não

escravo alforriado

criando o próprio mundo

Cidadão é sujeito simples

como a pedra e o poema

que vai a luta

e faz acontecer

entre as premissas do dilema

Cidadão é sujeito composto

de fibra e de valentia

de incurável utopia

luta, peleja, porfia

Cidadão é verbo

em todos os seus tempos

em todas as suas conjugações

com todas as injunções

é o ser que se flexiona e se expressa

em pessoa, número, tempo, modo e voz

para além da letargia dormindo dentro das noites

e o ofuscamento dos mil sóis das ilusões

Cidadão é quem faz os caminhos por onde a vida andará

levando as promessas e sonhos que ardiam

nos olhos da sua infância

inunda rios

faz cessar os calafrios

com assombros e estrelas

e luas que passam mudas

porém sempre lindas

sempre nuas

sempre dele

sempre tuas

faz o cego enxergar

e o obtuso questionar

para além do último pedaço duro de pão

para além do punhado de farinha

amordaçado ao feijão

CIDADÃO

cavaleiro da triste figura

a sonhar com Dulcinéias

enquanto os sonhos que sonham

os barcos ancorados nos poemas

enfunam as velas do mundo

e põe o mundo e os ausentes

no barco que parte silente

e sofregamente no mar

costumeiro

e por derradeiro

tira da opressão

coragens e forças para lutar

a luta mais árida e premente

a luta de se achar