POEMA ESCRITO EM TRÊS DIAS POR UM HOMEM QUE NÃO CONSEGUIA CHORAR
Presto muita atenção
quando alguém chora diante de mim
ou me conta que chorou
Acho isto bonito.
Interessante.
E fico pensando e recordando do tempo
em que eu conseguia chorar
Mas que coisa mais linda é o pranto!
Se alguém chora diante de mim
eu acho isso absolutamente lindo
Entretanto, este ato de entrega,
esta imagem de catarse,
depura demonstração de humanidade
nem sequer arranha a metálica superfície inexorável
do meu coração
Ver a facilidade com que minha filha chora
é um privilégio
Observar qualquer pessoa se descompondo
e deixando as emoções brotarem líquidas
é lindo,
é humano, é verdadeiro, é maravilhoso
Mas já não me afeta como deveria;
não,
não como outrora acreditei na verdade humana
Alguns prantos são dissimulados,
outros são forçados,
alguns até induzidos
e há os que são pura arte cênica
Este eu ignoro totalmente
Os outros, os verdadeiros;
destes eu tenho inveja,
pois há muito tempo não sou capaz de alcançá-los
numa transcendência catartica do espírito
e dos olhos
Eu sou um destes rios que desaparece na estiagem
e não retorna na pluviose
Sou um homem de pedra
aprimorando suas técnicas rudimentares para obter precisão
nas acerções diáfanas necessárias a vida
e ao tecnicismo vazio
Mas eu gostaria de chorar
como um dia já chorei
Eu gostaria de chorar e de me desfazer em lágrimas
e me sentir pungido
como um animal ferido
que sente dor e sofre desesperadamente
ressentindo-se de seu predador voraz
Mas parece que as dores
não podem mais tanger esta alma miserável
As dores carnais e primitivas pouco podem,
as dores abstratas da psique fenecem lentamente
em virtude da estabilidade concreta
da rotina dos dias de um homem de bem
Eu gostaria de poder chorar
Mas os meus inimigos são incapazes
de me atingir
Não me difamam,
não rogam pragas,
não sofro acidentes,
não perco dinheiro (não preciso de muito dinheiro),
não sei o que é terremoto,
não me sinto inferior,
estou sempre em minoria e isto me apraz
Casualmente minha mulher me pediu ajuda
e eu, ao ajudá-la a cortar cebolas
derramei uns pingos de lágrimas
Não eram verdadeiras, é claro,
não compunham sequer um pranto
mas serviriam como ponto final
para uma poesia árida
Morpheus