APRENDER O QUE É POESIA (2).
Os deuses são os mesmos,
Sempre claros e calmos,
Cheios de eternidade
E desprezo por nós,
Trazendo o dia e a noite
E as colheiras douradas
Sem ser para nos dar
O dia e a noite e o trigo
Mas ou outro e divino propósito casual.
Vivem em nós inúmeros,
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.
Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.
Se recordo quem fui, outrem me vejo
E o passado é o presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo
Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
Senão de quem habito
Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece.
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
Que quem sou e quem fui
São sonhos diferentes.
Uns com os olhos postos no passado,
Veem o que não veem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, veem
O que não pode ver-se.
Porque tão longe ir pôr o que está perto –
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
Vivem em nós inúmeros,
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar "
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Alberto Caeiro.
(HETERÔNIMO DO GRANDE FERNANDO PESSOA).
"SE PENSO OU SINTO, IGNORO. QUEM É QUE PENSA OU SENTE." UMA ALTA INDAGAÇÃO DIRIGIDA A "HÁ MAIS EUS DO QUE EU MESMO".