Queime depois de ler

Queime depois de ler

(Título do filme dirigido por

Ethan Coen e Joel Coen)

Nasci chorando

E desde cedo achei que o mundo era estranho

Não o mundo exatamente

As pessoas

As pessoas eram estranhas

Com seus sorrisos amarelos apesar dos dentes alvíssimos

Com suas certezas arraigadas

Com seus orgulhos contemplando a demência

Com seus deslumbramentos cansativos e letais dos egos

Com seus medos inviolados

Com seus passados que não passam nunca

Com seus porões cheios de frustrações, segredos e quinquilharias

Com suas casas caiadas

Com seus cães estatelados mimetizados às feições do dono

Com suas religiões fretadas a um deus do escambo e da usura

Com suas vontades insofismáveis de irem para o céu,

mas não querendo morrer

Rezando repetidas ave marias e pai nossos para purgar o mal

dos seus corações expulsos de um paraíso consentido

e a irreprimivel tendência a repetir sempre os mesmos erros

que um padre, pastor, rabino mendicante ouvirá

oferecendo linimento e salvação

Com suas madrugadas ainda dormindo nos rostos

homens devorarão outros homens

Trabalhadores usurpados

Burlados

Calados

conformados

sem direito à alforria

vivendo de uma disparatada alegria

sob o vilipêndio da mais valia

tal como a pedra já não lhes dói outro dia

Hoje, exausto, sei que não sou nada

e não sendo nada sei e intuo que o diverso e estranho sou eu

posto que muitos dizem serem algo de notável

que vai atravessando esta vida

Não encontro linimento entre meus semelhantes

nem na disparatada alegria

nem no vertiginoso alarido das vidas por acontecer

Nunca soube muito bem o que fazer

das inferências etílicas a que cheguei

em tantas madrugadas entre um canção e outra

entre uma página e outra de livros

que me lêem mais do que eu leio a eles

entre um barulho e outro da cidade a se mover

entre um engano e outro

não sei muito bem o que fazer

o maniqueísmo e o egocêntrismo ainda estão por aí

e apodrecem junto com este poema abastardado

Nunca soube o que fazer da minha contumaz

inaptidão insensata para a vida

e seus rituais

definho diante das convenções sociais

sem o menor traquejo social

tartamudeando palavras vãs

que não excederão a minha morte

Amei todas as mulheres que os anos trouxeram

Muito poucas souberam deste amor

Amei-as como quem olha a flor e se encanta

e passeia horas sem fim no jardim

Mulheres me quiseram

e eu só tinha o beijo sujo de desespero para lhes dar

Amo todas as mulheres (silencioso e embevecido)

com inefável encanto

Amei-as vestidas

despidas

adormecidas

amoráveis

amei-as tanto mais na hora da despedida

amei as que foram namoradas

amei as que eram da vida

amei Pingo, amei Maria

amei a agonia

e a paixão em tantos olhos

amei o amor das noites sem fala

amo o sorriso das mulheres

e os mundos insontes e possíveis que eles sugerem

Tantas noites declarei-me ao amor que não tive

tremi ao ouvir o silêncio passando pelas horas

de um tempo vagando dentro do quarto

chorei

o amor que não tive sonhei

até o sono chegar e me levar pela mão

até as escadas inelutáveis do dia

Eu e Deus não nos entendemos:

ele diz que eu preciso acreditar nele

eu entendo que é ele quem precisa acreditar em mim

e vamos levando assim

nem eu acredito nele

nem ele acredita em mim

Falo sozinho

Desde que comecei a falar falo sozinho

Falando sozinho

Já rezei missa em latim

Já intentei petições

Já fiz declarações de amor

Já roguei perdão e coragem para realizar os pecados

que por covardia não cometi

Já disse amarguras

Já disse ternuras

escondido pela escuridão

Disse amores

Ah! Como eu disse amores

dentro das noites pousadas em meus olhos

e a madrugada anoitecendo em meu corpo

e a vida toda sendo um barco que ainda não soçobrou

e tudo que não fosse luz fosse água e saudade

Disse amores em mil palavras que as manhãs,

introvetidas, não disseram

Na vida me é bastante e suficiente um mar

para costear e envolver a ilha que sou

para costurar praias na areia onde o sol possa nascer

Um mar pra eu ouvir...

com sua voz de contralto

com sua sede de areia

com seus cabelos de espuma

com suas águas acesas

Um mar pra eu mergulhar

neste mosaico incontido de água e de sal,

onde dormem as noites várias e seus segredos

onde dormem latentes e inextinguíveis os meus medos

Das tantas questões que a vida me propõe

Entendo pouca coisa

Tiraram-me os olhos e o discernimento ao longo da vida

E a cada dia entendo menos

Quanto mais pergunto

mais me inundo de um não saber

de um grito entornado porém sempre inacabado

Tentam me envolver com as sombras de um mundo prosaico

Tudo é tão complexo quando a gente chora

e as manhãs, escorrendo da noite,

sobrepõem aurora após aurora

A vida é tão singular

Nascer, sentir, amar, sofrer, morrer por que já é hora

Como entender e desvelar esta alma sutil

se a vida vagueia

numa inocência cega

por entre jardins que florescem

e manhãs que se fazem orvalho

momento

desespero

mistério a pender do galho?

Entendo pouca coisa

Não sei o que é a sombra o que é sina

Não sei o que é a mão inviolável da sorte

Certeza só tenho da morte

O tempo que por mim vai passando

vai deixando muito pouco pra se ver

minhas palavras todas pedem redenção no fogo

portanto, queime depois de ler