Poemas do Beco - ( III ) O Beco
O Beco era uma aldeia longitudinal.
Um país de uma só rua,
uma rua de uma quadra.
A civilização sintetizada
no universo do arrabalde.
E a tribo era um modelo
de urbanização em sua ordem
de organismo social.
No Beco todos se conheciam
e não havia divisão de classes
porque todas as casas eram iguais,
com gerânio nos jardins
e canteiros de verduras
e roupas nos varais.
Não havia água encanada,
mas a bica comunitária
saciava a sede de barris e bordalesas.
Meninos e mulheres faziam fila
a esperar, pacientemente,
a vez de encher o vasilhame
para matar a sede dos casebres.
No Beco havia uma escola
com ginásio de esportes
e uma pracinha de brinquedos.
Era o templo onde os meninos
jogavam futebol.
Meninas brincavam de roda
ou pulavam corda.
As mulheres conversavam
enquanto lavavam roupa
no lavadouro coletivo.
Os homens, nos fins-de-tarde,
reuniam-se no bolicho
para tomar aperitivo,
jogar truco,
falar de política ou de mulheres
e traçar planos
para o time do Beco:
O Esporte Clube América.
A economia do Beco
fazia-se de changas (biscate) nas granjas e estâncias.
Os que não trabalhavam no campo
eram “importadores”,
contrabandeavam da Argentina:
cebola, batata, azeite, carne e farinha.
A maioria das mulheres era lavadeira.
havia também:
costureiras, cozinheiras, doceiras
e, até mesmo, cartomante.
A comunidade era auto-suficiente
e nunca precisava de campanhas
para agasalhar as crianças no inverno
ou arrecadar brinquedos no natal.
Nem quando acontecia um incêndio,
pois os vizinhos se reuniam em mutirão
e, com uma tábua de cada parede,
com uma telha de cada telhado
era reconstruída a vivenda sinistrada.
Não havia analfabetos,
todas as crianças em idade escolar
freqüentavam as salas de aula.
Sabiam das estrelas e das borboletas,
dos vaga-lumes e dos girassóis.
Os adultos compareciam
à sede do Papel Crepom (teatro infantil)
para assistir as aulas noturnas
de várias disciplinas.
O Papel Crepom era:
a biblioteca,
o teatro,
o centro cultural
onde quem mais sabia
ensinava quem sabia menos:
tricô
crochê
corte e costura
artesanato
datilografia
poesia e culinária.
O pessoal do beco era bairrista
E não admitia que ninguém de fora
(com exceção de algumas crianças)
Fizesse parte de seus quadros sociais.
Mas, também, não participava
de atividades de outros bairros.
O povo tinha orgulho:
do papel crepom
do Esporte Clube América,
da professora Terezinha,
da escola com ginásio de esportes
do seu Souza, (Chefe de Trem)
da gente trabalhadora e organizada.
Quando o América jogava
tinha a torcida mais vibrante e colorida.
As mulheres levavam bandeiras
e os meninos soltavam pandorgas
com as cores da camiseta do time.
Quando o Papel Crepom
levava as crianças para a avenida, no carnaval,
em Dom Quixote, O Mágico de Oz
e tantos outros enredos,
era sempre o bloco mais aplaudido,
pelo entusiasmo dos componentes,
pela harmonia da coreografia.
A infância era sadia
e aprendia brincando
pois o Beco era uma escola
de solidariedade e poesia.
Trabalho e esperança
eram disciplinas obrigatórias
no cotidiano das casas.
Era uma comunidade rebelde
fora do plano diretor
de uma cidade planejada.
Um apêndice no mapa do município.
Por isso a burguesia provinciana
via o Beco como um lugar
de gente desqualificada,
como um grupo de plebeus
que, por não ter onde morar,
inventara o Beco para si.
Mas todo mundo sabia
que era o bairro mais disciplinado,
mais orgnizado,
o elo de ligação
(por sua posição geográfica)
entre o campo e a cidade,
entre a pobreza e a cultura.
Era uma sociedade perfeita.
Não havia prefeito
e o Beco estava sempre limpo e sem buracos.
Não havia televisão
e todas as crianças sabiam ler.
Não tinha indústrias nem exército
e não havia assaltos nem invasões.
Não havia creches
mas não se conhecia crianças de rua.
O Beco tinha de tudo,
só não tinha uma coisa:
Um nome.