O silêncio não existe

O silêncio não existe!

Posto que haverá sempre

o sibilar poroso do vento se insinuando

pelas frestas do dia

infatigável, doce e claro

Rumores de passos andando

no cimento das calçadas

na madeira carcomida da ponte

nas ruas de terra

nos paralelepípedos escorregadios

depois da chuva da noite

nas ruínas de antigos tempos

nas distraídas saudades

nas vielas baldias da loucura

em direção aos botequins

no caminho indeciso do bêbado voltando pra casa

chorando sem pudor

tanta dor

tanta dor

regressando aos braços do seu amor

na madrugada caiada de abandono

onde um cão ladra

e sombras descem das luzes dos postes

Asas ruflando

num céu escapando

se espremendo e se misturando ao horizonte

pássaros migrando

voando vôos sobre os campos ofegantes e impregnados

destas solidões que levam os pássaros

daqui para ali

dali para acolá

e de volta para cá

numa insustentável leveza de quem esquece o peso e o ar

e entrega-se à liberdade evanescente

a flutuar, flutuar...

Sempre haverá o gorjeio dos pássaros poetizando as manhãs

encobrindo a impiedade dos dias

Pombos arrulhando nas cumeeiras das casas

nos beirais dos edifícios

debicando restos nas praças encarceradas no solilóquio das cidades

Haverá dias em que a chuva cairá

tamborilando nos telhados

repenicando no chão

esfarelando-se, estrídula,

na terra seca dos quintais que ainda restam

Ocasionalmente uma gota de orvalho

ou uma lágrima se desprenderão

de uma flor

dos olhos dos anjos

leves e translúcidas

e cairão

revolvendo a terra do canteiro com inefável ternura

Quando menos se espera pode soar

o monótono tic-tac escorrendo das engrenagens infrangíveis

de um relógio antigo

evidenciando passados

ritmando lembranças

matraqueando entediantes horas de um tempo arcaico

e desprovido de sentido

Sempre haverá uma porta rangendo nos gonzos

assombrada

na casa escutando o silêncio se arrastando vagaroso

pelas estruturas vazias

pelas paredes caiadas pelas puídas cores do nada

Em algum momento

dentro de um inverno debruçado sobre à mesa

alguém sorverá uma colherada de sopa

na noite manchada pelo som do deslizar do talher no prato

levando sonhos à boca

O silêncio não existe

e mesmo que o mundo inteiro se cale

que a morte taciturna me fale

indizivelmente triste

inescrutavelmente antiga

sempre haverá um poema cingido a alguma voz

flutuando em memórias antiquíssimas

no burburinho dos dias enchendo o ar de rumores

no que diz as noites e madrugadas que não dormem

no tempo soerguido no ar

na hora íntima

olhos cerrados

em noites cheias de solidão

e de luas passeando na janela atravessada por um mar

passeando nos telhados e quintais

dissolvendo palavras

sílaba a sílaba

Sempre haverá um poema semeado no branco nostálgico de um livro

absorto como as ilhas demorando-se a fitar o mar

paciente como as hastes do trigo esperando os ventos de agosto

latejando versos

de inefável encanto

ou de quieto desespero