A cidade entardece

A cidade entardece

faz-se cantiga

ritmo

concerto

harmonia

no bimbalhar dos sinos

na hora da Ave Maria

A cidade enternece

em incipientes jardins

no canto invisível e desmesurado dos pássaros

ressoando nas árvores mal termina a madrugada

A cidade é súplica e prece

carpidas no recôndito de memórias ancestrais

no mimetismo do destino

A cidade envelhece

irrequieta menina

frágil senhora

idosa olhando o branco infrangível dos lírios

o viço da relva

o róseo perfume prenunciando a primavera

o poente sendo levado para dentro da escuridão

A cidade mente

despudorada/mente

incoercível/mente

inelutável/mente

inte/mente

A cidade treme

diante dos clamores do vento

A cidade é corrupta

parasita

pervertida

extorque a morte

locupleta-se de indeléveis sombras e medos

A cidade é arrivista

marginal

nunca tem ponto final

A cidade geme

sonâmbula

letárgica

roga piedade

a cidade

A cidade implora

demora

como o verso escondido na memória

como uma lembranças da infância

como o beijo e a carícia dos namorados

como o seio acalentando inefavelmente a mão

A cidade chora

antes de cair desmesurada

junto com as folhas das árvores

e o silêncio quieto do outono

A cidade é nervo-exposto

latejando dolentemente

A cidade enlouquece

cuspindo ruídos e sombras

A cidade esquece

flores felpudas nas janelas

abertas para a tarde afetiva e terna

esquece

segredos de lugares

distâncias temporãs

ilusões físseis

A cidade grita

aflita

solitária

entesada

A cidade se encolhe

quando o inverno chove

sobre o casario e a claridade

como um punhal gelado

A cidade rosna

para a vida que pass

nas rodas dos veículos

A cidade abriga a massa

amorfa

indolente

vitimizada

estigmatizada

impotente

inerte

abusada e violentada

em nome de uma pseudo humildade

A cidade sangra

sete dias

sangues de mulher

letárgica e despossuída

desvalida

A cidade segue à deriva

insonte

réplica transfigurada

aviltada

feudo de injustiças

submissa e muda

A cidade diz poesias

em alarido

quando o vento passa na vegetação da praça

quando o pingo cai na poça da chuva da manhã

e círculos concêntricos aspiram a esfera

que espera e roça em ondas a superfície da água

a cidade declama poesias

durante os espasmos da hora do rush

durante a cadência da dança das luzes

nos longos caules das flores vermelhas e amarelas

dos faróis dos carros deslizando refletidos sobre o asfalto molhado

no rosto indecifrável da fadiga da existência

na delicadeza da máscara kabuki acentuando a doçura das tardes

na hora do dia indo embora na ladainha dos relógios

A cidade me invade

fragorosamente

num alarido

de cores

cheiros

e sons

que o vento lento e alheio carrega escondido

como uma ausência tristíssima

como o instante imperdoável de acordar do sonho

como o silêncio murmurando entre as palavras do poema

que não diz o que poderia dizer

e não enternece a impressentida meiguice da cantiga

cantada à toa para a solidão

para as ruas desertas

para as janelas abertas

espiando, serenas, o burburinho tremeluzente dos carros

uma cantiga

entoada pela cidade para uma noite sem estrelas

para um céu escuro e sem lua

para uma madrugada sem ventura

para um mundo andrógino e sem Deus

sem arrimo nem muletas

sem lembranças

A cidade corre

escorre

e discorre

como o canto difuso das cigarras

zune

sibilando nas praças

tangendo as pálidas sombras das árvores

debandando pássaros

despetalando rosas

A cidade consome-se em momentos

de euforia e de aflição

A cidade entardece...

entre a síntese e a contradição