A cidade acorda

A aurora telúrica banha mansamente os edifícios

com a tessitura branco rosada que traz os dias

A manhã embaraça-se à vida

mistura-se ao burburinho rouco da cidade

dissolve-se, gota a gota,

no orvalho que molha a flor e molha a máquina

A cidade acorda

sem saber ao certo

se estão longe ou se estão perto

os fragmentos do momento esquecido dentro do sonho

A miséria ainda dorme sobre papelões

sob as marquises e o concreto e maciço des(a)tino

atravessado pela indiferença

e o cansaço da solidão sem resposta

A cidade boceja longamente

para as ruas ainda desertas

para os faróis ainda ofuscados pela nudez da luz do dia

As primeiras luzes arrancam à castidade do nada um sol

grafado em inscientes vermelhos,

vertendo lilases e laranjas

incandescendo o horizonte

antes de ser a clara essência do dia

Pássaros trinam

e se lambuzam de sóis e de poeira

O ar se move

e desaparece nas ruas e vielas

As ruas andam os primeiros passos

As horas mordem e mutilam a vida

entulhando os momentos de mentiras

O bulício acorda a cidade

A cidade se apieda

dos sonhos que deixou engaiolados

nos ventos que tangeram a noite sem rumo

expostos à fuligem quebradiça e densa

A cidade espera

que a madrugada se dissolva

num espectro de cores novas e fugidias

absorvendo o crepúsculo

entreaberto sobre ruas, praças, viadutos...

A cidade é linhas

traçadas no espaço derramado nas plagas

A cidade é quase nada

é latente nostalgia

signo enigmático

ruínas adormecidas

brincadeira de faz de conta

A cidade é sombra amassada

é cacos e ruídos soçobrados nas esquinas

A cidade se ilumina

desbordando o dia

A cidade arde

no vapor e gases cuspidos

pela febre convulsa dos escapamentos

A cidade respira

o ar cinzento de aziagos e intangíveis gases

A cidade transpira fadiga

de mansinho

pelas frinchas nas paredes das construções

A cidade rumina

o ruído seco e difuso dos motores

A cidade vomita

gasolina e óleo diesel

A cidade urina

na neblina sem nome que esconde os postes

no que restou da escuridão

O carro que passa buzina

inconcluso

indiscreto

translúcido

Abro a janela apendoada de monotonia

e vem a cidade junto

e assenta um grão de tumulto e sublevada agonia

uma certa incerteza

de ruas por enquanto inconcebivelmente vazias

de calçadas ermas, passivas e abstratas

de caos

de quimeras

onde o vento carrega papéis e pontas de cigarros

A vida recomeçando do outro lado da janela

sutil e à toa

infinita e sem nexo

atemporal e esquecida

incapaz e confusa

A cidade e eu somos um

íntimo reflexo que se esconde

no lado cego do escuro

A cidade e eu somos o "x"

a incógnita soma do nada