Toco

Toco os bosques e as matas

toco o tempo e as épocas

já me fiz barco, canoa,

veleiro, vento,

morada

de esvaídos pensamentos

toco o medo e sua fadiga

toco a noite e sua penumbra

que escorre pelas vielas

caminhando por entre o vazio

e o espaço onde antes havia um poema

com/passos encharcados de não ter sido

tudo demasiado longe

rasgando horas

dissolvendo instantes

cansaço

o tempo entornando medos e cismas

e velhas auroras

deixando pra sempre no ar

sua essência

e seus segredos

esquecidos os dias

que nasciam do rio

e no rio se acabavam

e(s)coando por entre as pedras

em diminutas mortes

esvaindo-se nesta descoberta

renascendo nesta rósea poesia

que a queda da estrela escreve

na extremidade escarlate e antiga do céu

incauto

terra pronta para a semente

lento caminho

onde azuis peregrinam

e arcas de nuvens improvisam rasantes figuras

esculpindo a forma

lapidando os fragmentos do horizonte

Toco o som e o eco

toco o desejo e o asco

já me fiz desfiladeiro, penhasco

lago, rio

cachoeira

de evanescidas palavras

toco o menino e o velho

toco o fim e o começo

buscando o tempo oculto

atrás do tempo

ensimesmado pelas pessoas que fui

pelos olhos que me olham desde o passado

Toco o amor e o silêncio

toco o exílio e o degredo

toco a sombra e o medo

atravessando insaciáveis madrugadas

carcomidas e escuras horas

em noites inexoráveis

enrodilhadas ao ávido abismo

ruminando amores

entre intenções

beijos que desperdicei

o ciciante aroma das noites

o íntimo perfume de mulher

o sopro de antigamente

rodopiando lentamente

e alucinando

as miragens e os desertos

por onde flutuam os caminhos em movimento

flutuam estrelas num céu solitário e onírico

flutua a lembrança do mar pervagante

Toco a tristeza e a melancolia

toco palavras e as letras

toco os redemoinhos e a ventania

apinhados de poesia

se dispersando

em ausência