Antes não era assim

Antes não era assim,

estes momentos indiscerníveis

tardios

espessos

cansados

só hoje é assim

antes não era o poema

não era o regato

não era a meiguice

não era o dilema

contido em tudo

não era a sombra da noite

a colecionar horas

não eram os olhos da Criação

e os redemoinhos prenhes dos quintais

só hoje

só hoje o regato escorre cúmplice das pedras

a meiguice afaga a face e o bulício dos meninos

emboscando lembranças que foi buscar no futuro

e no dilema singular onde crepitam labaredas

e os anos todos saindo de velhos baús submissos

acordando as madrugadas

bordando suspiros e imagens quiméricas

o dilema enrodilhando-se absoluto e desafiador

fecundando outro dilema

alaridos ondeando na cama

sem sono

só hoje

o silêncio alegórico das sombras

o tempo contemplando a solidão

os segredos

os medos

o pensamento,

mudo receio

despindo-se

dançando nu

na noite galopando rumo à claridade

portas

janelas

fechadas

namoro

o amor arfando

o beijo

o portão

a vertigem

acolhendo os corpos

seios e mamilos acariciando mãos

o jardim ondulando ao luar

emergindo da crisálida primavera

a rosa aberta em três versos

desmanchando a noite

manipulando perfumes

fascinando

inscrevendo sutilezas no ar

organizando a aurora sobre o mar

só hoje o poema se revela

e se arremessa como seta

como um tigre inefavelmente belo

incomensuravelmente ágil

emergindo furtivamente do meio da folhagem

antes que o vento o denuncie

salto

abandonado no ar

sonhos em fuga

para o tigre (ou o poema) não lhes pegar

antes não era assim...

não era...

só hoje