Diz o poeta

Diz o poeta que a vida toda é isto

conseguir

o morar,

o comer,

encaminhar a solução

do amar,

do morrer,

e a estreita constatação

de que alguns podem ter delírios de poder

e, desde então, caminhamos tantos caminhos errados

nos enredamos em fugas e escapes

ficamos paralisados diante do escuro abismo

diante do inextinguível desconhecido

entre

gritos,

imprecações,

palavras envenenadas,

muitas vezes ensandecidas

como se a vida fosse um medo

que nos assusta e subleva

e nos impele uns contra os outros

em monólogos ininteligíveis e pretensiosos

em sórdidas disputas ególatras

em monótonas e insanas guerras exteriores

vazando de dramas pessoais

da insuportável aflição que é não conhecer-se

e ignorar a guerra interior

que redime e liberta

guerras exteriores

vazando da inesgotável e cansativa intolerância

das ilusões que exasperam

das incompreensões viscerais

crenças incontinentes

seitas onde moram o desespero

e a ausência de fé e compaixão

da ausência da alma

embaçada pelas falsas imagens no espelho fosco das vaidades

guerras feitas de interesses escusos

e da ausência do humano

mimetizada em ódios

preconceitos

e o arraigado conceito enganoso de sermos melhores

do que aqueles a quem atacamos

e a vida inteira se dissolve no tempo

e no desespero das contradições

em busca da explicação (constatação?)

que nos faça aceitar

a morada em que vivemos

o alimento que comemos

o amor que nos sustêm

e a morte,

esta noite que acontece de repente

intempestivamente

este encontro com a névoa

e o imponderável

sem se saber se haverá outra(s) vida(s)

outra oportunidade de extirparmos a ignorância

numa segunda,

terceira,

enésima vez

sem se saber se haverá outro lado

céus e infernos

sopesando erros e acertos

decompondo os detritos do drama

que se viveu (que se vive?)

e todos os dias o assombro do entardecer

derrama-se mar a dentro

por vezes deixando um espasmo vermelho nas águas

deixando a noite a espremer-se entre o ocaso e o cotidiano

a vida boceja e acomoda os olhos à escuridão

o dia esvanece

sem remorsos

sem culpas

ou medos

cicatrizes

entre descansados segredos