Que faríamos nós se soubéssemos que partiria?

Que faríamos nós se soubéssemos que partiria?

Como perceberíamos os dias?

Se viesse a luz que é divina e nos mostrasse: “Vai amanhã”

Que faria eu para te alegrar o hoje?

E como sei que a luz que é divina não veio?

E não disse?

Mostrara-se clara e alta no início de todos os túneis

Agora vejo

E fiz eu nada…

Fiz eu coisa alguma com tantos hojes que viraram tão poucos ontens porque prometia para amanhãs.

Fiz eu nada, meu pai

Fiz eu nada e escapaste de mim

Verá como agora o que ando fazendo?

Verá como o teu neto, meu filho, que um dia de mim nascerá?

Responderá como quando eu colecionar de volta pequenas decepções

alimentando assim este meu imenso império de tristezas?

Foi pro mato, foi de bicicleta, foi ali e já volta,

Foi ali e já volta….

Chove! E o pai naquela cama?

Esquenta! E o pai naquela cama?

Encontrei-te e te deixei paralisar.

Fui-te vendo a piorar

Vendo-te a falecer

Furtei-te de tua rotina, assaltei as manhãs dos que te cumprimentavam de manhã,

Arranquei-te do muro que sempre te encostava, te tirei a bebida e o cachimbo, sequestrei tua alegria de comer e a alegria cansada da risada das tardes quando via qualquer novela.

Matei-te, meu pai, quando não fui te visitar, quando te deixava já deixado pela minha mãe, tua mulher, que planta flores no chão do céu.

Matei-te, meu pai, quando pensava que não precisava de mim.

Abracei-te morto no quarto que me abraçaste pequenamente vivo quando me contava histórias.

Guardei teu corpo naquela caixa na mesma sala em que me levara um prato de comida.

Fui eu, meu pai, que construí aquela caixa, aquela nave de madeira que te levou à cidade dos não vivos, dos mortos para sempre.

Fui eu que enterrei tua história, meu pai, todas elas, inclusive as que nunca me contou, quando não te dei ouvidos, quando não parei o assunto imbecil e urgente de minhas vontades.

Fui eu que te fiz adoecer quando me dizia “estou com Deus aqui em casa, nunca fico sozinho"

Ficavas, sim, meu pai, sozinho de mim… quantas tardes conversávamos, meu pai, e quantas tardes eu não estava lá, quantas noites, quantas manhãs levei falta na sala de casa...

Enterrei morta a tua vida, meu pai, e agora também sufoco eu enterrado de tua falta.

Que faríamos nós se soubéssemos que partiria?

Que fiz eu, meu pai?

Fiz eu nada,

Fiz eu absolutamente nada

E a estrutura de tua ausência

Constrói todos os dias um castelo de remorso dentro do meu peito.

Ah, meu pai...