"As madrugadas tinham penas"

As madrugadas tinham penas

que arranquei uma por uma

às noites vestidas e públicas

dos corpos em malmequeres-poemas

mostrando o tempo por ponteiros-bruma

Foi por esperas quase lúdicas

que fiz poemas em todas as horas

que fiz letras para todas as músicas

que preenchi cruzadas pelas demoras

e me bebi de ti

E foi quase assim que me perdi

quando os pássaros não trinaram

quando as palavras me procuraram

e o poema me pareceu

a única coisa boa que me anoiteceu

Disse-te: estou só, aqui pela manhã

essa que te trouxe ontem e t'esqueceu

porque roubaste aos verbos o tempo

e de mim te socorres como maná

para nomear o que levou o vento

-Não faz mal - dizes-me tu em mim:

que não te pertenço, nem te conheço

e o único alento que te dou corpo-nu

é a memória de mim na fugidia madrugada

onde aconteço e me dou dada

num desfolhar d'alma que não tem fim

Fujo revoltado e retorno soturno

como vampiro ensanguentado ao tema

procuro e não encontro o teu eu amado

neste noturno e findo poema.