REQUIEM
(REFLEXOS DE HUGO)
I
Paz à treva! dormi! dormi! dormi! dormi!
Seres, turbas ferais, confusos, vós que aí
Vos desfazeis em cinza, ignota e lentamente;
Dormi em paz, dormi, tranquila e eternamente;
Na vossa argila vil, nos vossos marmor's pulcros!
Dorme, campos! dormi, flores! dormi, sepulcros!
Tetos, muros, umbrais de choças e de paços
Torres, burgos, covis que unem os mesmos laços
E que ao mesmo Destino a mesma Causa chumba;
Miasmas do paul, pedras da catacumba,
Dentro do ninho a pluma, a folha, na floresta!...
Dormi, hastes de grama, hastes de cedro! e nesta
Sombra, neste dormir para sempre quedai-vos!
Parai, vagas azuis! matas virgens calai-vos!
Silêncio sobre o enorme horror religioso,
Sobre o fundo Oceano, o bruto, o impetuoso
Monstro que o freio morde espumante, indomável,
Sobre o apaziguamento unânime, inefável,
Dos Mortos, sobre o Sono eterno do Não ser!
Silêncio! Reticência ás pugnas do Viver!...
Sim! paz á escuridão silente e misteriosa,
Paz à Divida imane, à Noite criminosa,
Essa atéa hedionda, essa torpe assassina,
De tudo que é infame eterno Messalina!
Paz a ti, Natureza; a ti Circulo e Centro;
Causa e Eleito, Alma e Carne; a ti, Ventre onde dentro
Se gera, vive e morre a Humanidade inteira;
A ti, fecunda Mãe, potente e alviçarreira,
Vasto formigamento universal de tudo,
Soledade onde impera um Deus solene e mudo!
II
Ó pobres gerações de arroubos ideais
Repousai! Repousai! torvos passos que andais
Pelo Mundo! Dormi, vós que sangrais, sofreis!
Dormi, vós que chorais! dormi, vós que gemeis!
Dores, chagas mortais, fundas mágoas sombrias,
Tormentos, aflições, supremas agonias
Estendei vossos pés sangrentos, macerados!
Para sempre fechais vossos olhos sagrados!
Tudo é religião! nada aqui é impostura...
Que, sobre casa Vida e cada Criatura,
Quer viva do hausto humano ou do sopro animal,
Firme perante o Bem, de rojo aos pés do Mal,
Asselvajada ou mansa, imaculada ou infame,
Se ora ou se blasfema, arrulha, coaxa ou brame,
Que sobre cada qual, esplêndida, divina,
A imensa paz do céu desça à flux, anodina!
Que os inferno cruéis sonhem c'os paraisos!...
Repousai! Repousai! Brisas, granizos,
Ondas e almas, dormi! enquanto na Montanha,
Em presença do Ser, cego de luz tamanha,
Nesse Cosmos sem fim, onde continuamente
Surgem mil criações, o astro o homem, a serpente:
Os eixos iriais dos das estrelas
Que nós chamamos céus; as frescas tardes belas,
Auroras boreais bólidos e cometas,
Esses frutos do céu, por entre as nuvens pretas,
A tremer, a cair desses divinos galhos;
Nebulosas sutis como finos retalhos
Da túnica de Deus, bagas de oiro e de prata
Gotejando no véu da Noite, que o desata
Por sobre a terra e o mar, como um crepe suspenso.
Dormi, enquanto absorto, em frente ao Ser Imenso
Extático, o Poeta, erguendo os olhos lentos,
Pálido, ébrio de treva, ébrio de pensamentos,
Procura soletrar a cifra desses grifos
Relendo n'amplidão álgebras e hieroglifos
E, contemplando, o azul, cheio de angústias, cheio
De assombros, porém, sempre abroquelado o seio
De Impavidez, de Fé, tenta enfim resolver
O lúgubre problema e curioso ler
Esse enigma fatal, assombroso, terrível,
O segredo do Além, a alma do Incognoscível...
O misterioso X do Meio e, das origens,
Curvado no cairel do abismo das vertigens,
Impotente a seguir os albores que voejam
Como alciones, e ao longe estranhos relampejam...
Dormi! enquanto o Poeta, à beira do Infinito,
Recalcando, de chofre, um pavoroso grito,
Vê, enchendo-se de luz, de raios, de arrebóis,
Reverberando o céu, espadando sóis,
Abrir-se lento e lento, estupendo e inflamando,
O báratro eternal de trevas entulhado!...
1893.