Profano

na rua antiga e sozinha caminham os ventos

manchados pelo vermelho

das vozes aflitas

das multidões deambulantes

assenta o pó impalpável

da incerteza

e voa

o voejar descompassado

e vagaroso

esvoaçando no ar pesado da tarde

esgueirando-se pelas nuvens úmidas

prestes a chorar

suspirando em meio aos jardins ditosos

derrubando folhas das árvores

nos lagos angustiando os outonos

com remorsos de todas as folhas do mundo

revolvendo infâncias

gira a terra e os basculhos da rua

em opacos rodamoinhos

caminham os ventos

tirando chapéus

desarrumando cabelos onde antes havia uma flor

pulsando belezas como o coração que estremece com a gente

no tremeluzir fluído das palavras e da impermanência

os ventos descem das árvores

levam suas forças ao chão

giram o destino,

o segredo,

giram o redemoinho

repete,

por mero hábito,

sacudir quintais,

saudades

e desencontros

caminham,

levando o dia encardido pela mão

o tempo se ri do ventos

o tempo não existe

bem feito!

as folhas fogem

as nuvens escondem memórias

cuidadosamente denodadas

os ventos e seus mistérios

como vieram se foram

e a rua voltou a ser

a rua da vida inteira

na rua antiga, agora,

como fuga para os olhos

como missa e oração

só caminham o homem,

o tormento

e seu cão

magérrimos todos

antigos

passos insontes

passado, desde sempre, querendo morrer

um morte provisória

interrigna

sem interessar mais aos caminhos

a morte poderia vir do rio

da dor que sobe e desce no peito

do seu naco de fome

do progresso do país

que quanto mais cresce

menos o vê

podia morrer da indiferença

do sono no papelão

cama pra dois

ele e o cão

podia morrer antes que a minha retórica pedante o alcançasse

inexoravelmente

comovida

e profana

destino de bicho

almoço no lixo

um pão urdido de pedra

num mundo feito de fome

severo

e pobre

para aqueles que já nasceram mortos

e vagueiam em degredo por uma vida que não é deles

mas é preciso fazer o caminho

fechar a porta do medo

para si e para o cãozinho

deglutir até o fim o que os deuses

por bem resolveram brinda-lo

alheios à morte

única verdade que nos chama todos os dias

comamos osso e pedra

ou a mais fina iguaria