Cigarras
a ilha regressa
depois de milhões de anos vagando no mar
num solilóquio escuso
no céu é janeiro
o dia trouxe o cantochão inesperado
e rouco das cigarras
as crianças seguem o rumor das cigarras
lata na mão
esperam sem piedade
que a dona cigarra embeveça-se com a sua própria música
para pegá-las com as latas
inocentes
indiferentes à vida de quem canta esta sonata de verão
mimetizada contra o tronco cinza
na tarde quente de janeiro
o vento, ouvindo o som estrilado das cigarras,
repassa-o à ilha e o dia cheio de mar
sopra poeira nos olhos ingênuos das crianças
desvela serafins em meio ao bulício
e a algaravia das vozes das crianças
e o canto das cigarras
catando... cantando... cantando até morrer
a tarde passa leve e distraída da azáfama
que a tinge de cores tão desconhecidas
quanto os versos alcoólicos não lidos
a tarde apreende-se da morte do dia
no mar os ventos caminham irisados pelo sol
a ilha regressa do seu desígnio de imiscuir-se
às velas enfunadas e ao voo das gaivotas
as cigarras tornam maiores
a solidão e o sortilégio das horas
as crianças compensam o ciciar das cigarras
com o silêncio oculto nas latas vazias nas mãos
por entre as folhas de flandres das árvores de barro
insinua-se o hálito quente do verão
no mar,
a ilha regressa
de onde aprendeu a morrer