[Cinzas]
Entardece... e sou apenas melancolia.
Cá na estrada, eu paro e olho colina acima:
surgidos das cinzas de um tempo já escoado,
vejo os arcos da varanda do casarão de meu avô,
a mansão dos seus sonhos de imigrante italiano.
O tempo...
No topo da imponente fachada mediterrânea,
vejo uns pássaros escuros, mudos, estáticos;
seus olhos lúgubres espiam o terreiro batido
que se estende até esta estrada
de onde descortino aquele tempo.
Lá dentro do casarão, agora silencioso,
apenas imagino, pois eu era muito pequeno,
há a vigência de um tempo de perda irreparável:
noite adentro, maxilares banhados de lágrimas,
mastigam lentamente a dor de uma morte
pranteada com fartos cestos de pães.
Cá na estrada, eu paro e olho colina acima:
por esta janela que dá para aquele tempo,
os tijolos nus da varanda, lavados
pelos chicotes das chuvas de tantos anos,
ainda hoje, contam-me a história
dessa morte que, para sempre, cerrou
os verdes olhos de meu pai!
O tempo e as cinzas...
Primitiva preparação a fogo da futura colheita,
ao lado do casarão, queima a palha de arroz
que deixará o vasto campo coberto de cinzas.
Pois nem mesmo toda a cinza daquele campo
seria o bastante para expressar toda a tristeza,
toda a dor daquela morte que não presenciei,
e por isto mesmo, até hoje, permanece inacabada.
O vento e as cinzas...
O vento, na soledade das tardes ensolaradas,
agita num suave farfalhar as copas dos eucaliptos,
enche-me as narinas, os olhos, o rosto,
daquelas cinzas de que eu não consigo me olvidar.
O tempo, o vento, as cinzas... e o cão amarelo —
o cão amarelo, o fiel animal que eu nunca vi,
é uma sombra que perpassa, furtiva,
pelo campo do meu olhar esquecido no vazio;
esse cão, contaram-me, morto o dono,
desapareceu de casa naquela tarde!
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[Penas do Desterro, 25 de março de 1999]
Velho Caderno 1, p.176-verso -
para a minha coletânea "Arribadas(O Passo da Volta)"