O MILAGRE DE DES. JOÃO

(LENDA)

Espoucam foguetes, guizalham risadas,

Pegos fogo à terra, pegou fogo ao céu!

As lindas estrelas fugindo assustadas,

De negra fumaça mergulham no véu...

Nos vastos palácios, nas tristes vielas,

As mágoas da vida nest'hora olvidando,

Fidalgos, burgeses, rapazes, donzelas,

Criança e velhos dançando, folgando

Das grandes fogueiras ao rubro clarão,

Alegres repetem: - Acorda, João! -

Dos céus escondido, porém lá nu fundo,

Há mais de mil anos, tranquilo, a sonhar,

O Santo, abismo num profundo.

Imóvel, o Santo, não quer acordar...

-o-

Coberto de andrajos, num velho casebre

No qual entra o vento gelado, entra a chuva,

Que duro abandono! Ardendo de febre,

Se encontra deitada chorosa viúva!

Sentadas em frente do catre de pinho,

'Stão duas crianças tão magras, tão nuas,

De fome e de frio gemendo baixinho,

Fitando assobradas as festas das ruas...

Enquanto dos fogos ao rubro clarão,

Mil vozes repetem: - Acorda, João! -

Como elas invejam, coitadas, tristonhas,

Os lindos foguetes, das sortes os maços,

Que as outras crianças, felizes, risonhas,

Ligeiras, passando, carregam nos braços!

Mas das alegrias, nas horas dementes,

Quem dos desgraçados fez caso jamais?

Das grande fogueirasn ao rubro clarão,

Baixinho gaguejam: - Acorda, João! -

-o-

Embora tão débil, esse éco planguente

Galgando as estrelas tornou-se clamor;

Do Santo aos ouvidos vibrou fortemente,

Vibrou como um supremo de Dor!

E o Santo, que havia de séc'los um bando

Gozava beato seu sono eternal,

Os olhos esfrega, do leito soltando,

- Um leito de nuvens - e acorda afinal!

O olhar baixa à terra, dos órfãos na pista;

E as trevas rasgando tão lúcido olhar,

No humilde tugúrio, chorando, os avista

E a velha de bruços ainda a rezar.

Em face de tanto, de tanto abandono,

Um grande soluço mal pode conter,

Lamenta o repouso, lastima tal sono

Que as mágoas dos homens lhe fez esquecer!

Das grandes fogueiras ao rubro clarão,

Mil vezes repetem: - Acorda, João! -

As palhas furando do tosco telhado,

Das duas crianças surpresas em frente,

Um belo foguete, soberbo, dourado,

Brilhando no ar, caiu de repente.

Que linda pistola das grandes, das caras,

Intacta ostentando da escova o cocar!

Daquelas que jorram faíscas tão claras,

Daquelas que os ricos costumam queimar!

Nenhuma criança, porém, neste mundo,

Nenhuma já teve foguete tão lindo!

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Um tanto medrosos, - que gozo profundo -

Acendem-no logo, contentes, sorrindo...

Milagre! Faísca não deita a pistola!

Um grito de espanto na choça ressoa:

É ouro! Sim, ouro! - milagre! - que rola,

E dos miseráveis aos pés se amontoa!...

-o-

Espoucam foguetes, guizalham risadas,

Pegou fogo á terra, pegou fogo ao céu!

As lindas estrelas fugindo assustadas,

De negra fumaça mergulham no véu...

Nos vastos palácios, nas tristes vielas,

As mágoas da vida nest'hora olvidando,

Fidalgos, burgueses, rapazes, donzelas,

Crianças e velhos dançando, folgando,

Das grandes fogueiras ao rubro clarão

Alegres repetem: - Acorda, João! -

-o-

1902.

DR. EGAS MONIZ BARRETO DE ARAGÃO (PÉTHION DE VILLAR)
Enviado por Francisco Atila Moniz de Aragão em 03/04/2015
Reeditado em 03/04/2015
Código do texto: T5193303
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