Enredo

Para a paz diáfana do dia há solos de pássaros

ecoando no ar de uma manhã nublada de novembro

Na alento do canto dos pássaros

há lembranças e lamentos

Lamentos de quê?

Lembranças de quem?

Lembrança de uma rosa vermelha esplendendo

junto ao glauco musgo do muro,

dando cor ao mavioso canto,

que soa tão de mansinho a fingir-se de ar?

Talvez a lembrança de um pássaro origami

levantando voo das dobras da vida?

Ou a lembrança dos felinos olhos negros de Pingo?

Lembrança da embriaguez de uma carícia meiga,

numa tarde boba,

de bobos sonhos e bobos amores eternos?

Lamentos de um passado umbrático?

Lembrança de quem, meu Deus?

Lamentos de quê?

Conspícuos lamentos

Olhares chorosos olhando de si para si

Um ponto a ser posto na vida,

sem saber-se se é de dúvida,

exclamação,

ou ponto final

Vozes trêmulas silabando as lembranças

de um passado todo instado em renúncias,

numa manhã nublada de um novembro

embriagado,

irremediavelmente bêbedo de eternidades,

debruado pelo gorjeio dos pássaros invisíveis

dos quais só se houve o canto

e se supõe uma existência inominada

E que o canto nos baste

Inebriado com o canto pervagante me basto

e me imolo para algum deus e a sua imanência

Afinal, se tudo foi só um momento fora do tempo

quando a vida, anacronicamente,

volatizada e vacilante

entregou-se a um escriba anacoreta,

abandonou-se à sandice

e à fantasia

tudo o que veio depois

foi o suspiro vermelho dos ventos nas tardes

e a cantiga melodiosa e inolvidável da poesia