Sou um homem desinteressante

Sou um homem desinteressante

não sei fazer a pergunta

que me daria a resposta

Que mudaria o rumo

Das tantas madrugadas acordado

Arrastando lentamente pela casa

dúvidas, segredos, incertezas

culpas, medos, angústias

nomes que se entreolham

vultos de coisas, pessoas e lembranças

alguns, bem poucos, viram poemas

a maioria, ao adentrar a desconfortável

estupidez da realidade,

vira problema

e, por que nasci nu e perplexo diante da sorte,

por que respirei pela primeira vez,

começei a me matar

algo em mim põem-me a morrer

quieto e sisudo

Sou um cara desajeitado

DESAJEITADO!!!

Não maldoso

Falo quando deveria calar

Calo quando deveria falar

Meto os pés pelas mãos

com incalculáveis consequências

Ponho a cabeça na boca do abismo

de repente, sem querer, sem perceber

que as palavras que falam doce e mansamente no dia a dia,

gritam e imprecam na solidão e na carência incubada e mesquinha

não sou feliz, nem sou triste

estou feliz ou estou triste

tenho laivos de felicidade

e solos da mais profunda tristeza

tenho a alma dividida

em um anjo de dissimulada escuridão

que se imiscui aos meus olhos

amarra a sombra fluída no meu corpo

com os beijos enrugados da apatia

viola-me os sentidos num sofá antigo

e enche-me furiosamente

de um ar desbotado e ruim de porões avoengos

suja-me o espírito de alucinações e melancolias

e um anjo de onde emanam as manhãs

ternas e azuis

colocando no céu um último sol sozinho

que esplende tocantemente tornando os dias e as noites luminosas

a vida sedutora

abro as janelas e os momentos, silentes

a centopéia dos sentimentos acelera a deambulação

libidinosa

impaciente

irritadiça

intolerante

desalojando as palavras de seus esconderijos e fazendo-as rolarem

num vai-e-vem de qualquer coisa distorcida

me perseguem

ao invés de serem colhidas

até me atropelarem

o último sol transborda réstias e reverberações da luz primordial

andando pelos jardins

com gesta, fazendo rosas

silente, ouvindo os pássaros cantarem

e plantando aqui e ali um espanto

pra gente se surpreender e encantar-se

enchendo de crianças o dia

e risos de crianças, o dia

e preenchendo de azul o mar

fazendo dormir o perfume nas flores

carregando os caminhos

habitados de passos e jornadas

e de estremecidas demoras e ruídos

que deslizam pelo lodo do tempo

e vão dar no rio

que flutua sobre os seixos e o silêncio naufragado

das frutinhas que caem nas águas

não planto

não colho

não danço

não canto

não sapateio

não toco um instrumento

não gosto de carnaval

não grito o gol do brasil

não tenho ideologia

não levo o lixo pra fora

não dirijo

não gosto da chuva quando ela cai em horas impróprias

não gosto do sol quando ele esplende em horas impróprias

não gosto dos dias beatamente iguais e comuns

gosto das noites abusadas, sedutoras, fugitivas e pervertidas

gosto da noite quando vem acompanhada de uma madrugada

e de uma lua e uma estrela para eu olhar e cismar

queimar-me na fogueira das inquietações

que não deixam o sono dormir nos olhos

que vagarosamente e emocionados fitam tanta escuridão

tremelicando a luz que pulsa no casebre das estrelas

não gosto de passarinho em gaiola

nem animal encarcerado em apartamento

não gosto de tomar banho

não gosto de escovar os dentes

não gosto de mostrar os dentes

não acredito na revolução popular

não tenho estórias para contar

não tenho dinheiro para contar

não leio jornal

não assisto jornal

não gosto de banho de mar

não gosto de trabalhar

não creio no homem

não creio nesta política arrivista

não creio na democracia (merdocracia?)

destinada a engabelar a carneirada

não creio em um deus

não rezo antes de deitar

nas horas de precisão

não tenho santo que me socorra

não tenho reza que me conforte

não tenho anjo que vele por mim

da religião ficaram só os demônios

que se refestelam na minha cama

falam em meu travesseiro

e me possuem

e ganem

e uivam

atravessando as paredes e perdendo-se nas trevas emudecidas e sedentas

que regurgitam escuridão apagando a memória da idade dos tempos

sob o olhar zombeteiro, leniente e cúmplice da madrugada

sonâmbula, caiada de escuridão, vícios e perversão

almoço

arroto

cuspo no prato que comi

recolho e amontoo na pia

bebo água direto na garrafa da geladeira

até hoje não sei com quantos paus se faz uma canoa

sofro tristezas por não saber da missa a metade

não sei onde é que o Judas perdeu as botas

e sei ainda menos onde é que ele perdeu as meias

minha vida não tem sentido por eu não saber onde o vento faz a curva

aprendi por observação que vale mais um pássaro voando que dois na mão

tenho encardidas desconfianças de que água mole em pedra dura

tanto bate até que cansa

ou o nunca antes visto das estiagens evapora as gotas desmaiadas

que a inconsciência dos ignaros esqueceu de usar

mesmo após décadas convivendo com suínos de quatro e de duas patas

nunca vi a porca torcer rabo

aprendi, por precaução, a diferença entre centavos novos

e senta nos ovos

desde que saí do ventre de mamãe vivo num mato sem cachorro

aos gritos, em incontroláveis momentos de inocente petulância,

já tentei ensinar o pai nosso ao vigário

afirmo categoricamente: é dando que se perde a virgindade

sempre ouvi dizer que a esperança é a última que morre

só esqueceram de dizer, que sendo assim, a gente morre antes

apesar das contraditórias linhas acima

não sou um cara engraçado

o lusco fusco da vida é que tem me dado estas febres rompantes de histrião

não sei contar piada

não rio de quase nada

sorrio

sorrio pouco

um sorriso amarelo, desatento e desdentado

durante as crises de euforia

como se a memória e a emoção me fugissem

e eu esquecesse o estulto que sou

acho tudo uma grande e descomunal piada

e rio, parvamente, até a boca ficar exausta,

rio o riso gratuito, fácil e insano dos tolos

para os quais uma vida não chega para tanta pândega

peido

às vezes peido sonoramente

às vezes peido sonoramente e fedido

tenho o hábito asqueroso de todo dia dar uma cagada

quase sempre discreta

raríssima vezes homérica

desentranhando de mim o que no organismo

frustrantemente não serviu para nada

e o resultado desta frustração é um monturo

deslumbrante e bem afeiçoado de merda

tiro ranhos do nariz e os lanço no espaço ao acaso

fumo desbragadamente

o câncer contido

nas humilhações

nas desesperanças,

nas indelicadezas,

nas teimas,

as mágoas,

na memória que ruge,

no pacto quebrado

nas pedras começando lembranças

fumo os mortos que há em mim

imponderáveis

e inextinguíveis

tal como eu

palavra que se esconde no canto mais escuro

tudo me enfastia

não sei o que quer para mim a sina

nada sei nada da vida alheia

passo longe da voz triste e enferrujada das fofocas

nunca me dei bem com o que alucina

não sei dizer o caminho

que anda como um sandeu para a minha noite

sem o adorno de um deus que a sustente

sem estrelas sinalizando o final da antiga e obscura história

só o mergulho desajeitado rumo ao poente

despencando dos rochedos

falo pouco

muito pouco

quase nada

na verdade, não sei dizer o falar básico da vida

não sei fazer o social

acho tudo que digo tão artificial e empoeirado

minha ladainha é impotente e imprecisa

como a fumaça que evola-se sem pressa e sem barulho

não sei cativar e cultivar amizades

não sei dizer o que você quer ouvir

não faço ideia do que você quer ouvir

não sei se você quer ouvir o que eu tenho pra te dizer

nem sei se você me ouve

nem sei se você está aqui comigo quando falo com você

a palavra me espanta

a palavra me encanta

a palavra me oprime

a palavra me redime

a palavra só é boa quando queima o coração

quando quem fala não é a boca

mas o gesto e a emoção

que diferencia um amontoado de ossos, vísceras

carnes e músculos

de um ser humano

estranha criatura que pensa e sofre e chora nas madrugadas

quando o silêncio é um nervo exposto

e o lago engole a lua

e o sabor das estrelas deixa um doce amaro

na boca de quem consegue ir até o fim onde começa o mundo

Alguns, por não suportarem o silêncio, como fuga falam de tudo e de todos,

levianamente

irresponsavelmente

irrefletidamente

precipidamente

parvamente

ensandecidos

como se soubessem de tudo e de todos

com seus discursos surrados e cheirando a mofo

O medo!!!

Ah! O medo!!!

Sangra a fúria, a inconsciência, a maldade, desespero

numa morte prematura da alma decrépita

não sei cavar trincheiras

não sei aliciar soldados para a minha luta

minha guerra eu luto sozinho

morrendo horas e medos

não sei ler mapas ou mãos

não sei fazer tanta coisa

cansei das águas secas

da tutela e da palmatória do ditador

que perora dentro de mim

os medos me têm

apesar de não conseguir dizer-me em poesia

tendo a cuspir poesia toda vez que me falta o ar

e meus olhos marejam passeando pelo inferno

pecador que sou

sentado em cima da minha consciência

esqueço datas e fatos e atos e erros

pretéritos, presentes e futuros

e erro o mesmo erro por pura vadiação do passado

e por não atualizar minha prosa

apesar de não saber fazer poesia

enquanto não me retalho e não me mato com o punhal cego de um texto

as minhas mãos não param de tremer

a minha luta conclama às mãos que não parem de escrever

nunca sei quando a minha pseudo poesia termina

o que era para enganar em algumas linhas

demora a encontrar o ponto final

toda vez que o vento sopra aflorando dores

arrancando mordaças

surge sempre alguém canhestro, de voz embargada, querendo se expressar

a lua fica vermelha e sonolenta

caminhando na estrada escura que leva a noite à minha casa

que fica nos subúrbio onde arde num barraco meu coração

sou um teórico da vida e do amor

o meu discurso é mais extenso que a minha emoção

a minha falsa calma me irrita

me irrita a minha nostalgia asceta

padeço de saudades de quintais

de flores em canteiros

da chuva escrevendo rios nas ruas de terra

e eu, pateta e gaio, chafurdando a liberdade nas águas

de um marrom-amarelado tirante a encardido de menino

ficou da chuva na pele a condenação caseira e doce,

o arrepio quando meu corpo eriça pentelhos, intumesce mamilos

ficaram marcas nuas, cheiros de sexo, gemidos e gozos nos leitos

deitados

cobertos com tristes lençóis puídos

mordidos por bocas vorazes de damas medievais

molhados pela sede saciada das vaginas eternamente virgens

eternamente ansiosas, famintas, gulosas filhotes de aves

de boquinhas sempre abertas esperando a minhoca chegar

escorrendo eterno jejum de beijos

formigando lamentos e chamamentos

sugando e ensopando a glande e o corpo do pênis

ficaram, da infância, cicatrizes da luz de velas

nas noites de escuridão e cisma e carência

sopa quente no prato com figuras de contos de fadas

remorsos pelos vagalumes esfregados na camisa

o cheiro quente e ardido do corpo das meninas

o vislumbre inenarrável de uma calcinha guardando

ingênuas fogueiras e promessas sentadas em cima de um tesouro

o meu ódio é mais completo quando estou animal

pouco sei de mim mesmo

dos meus deveres como ser humano

dos meus desvelos como ser ungido de sentimentos

das promessas que faço para mim e não cumpro

do que fazer com tantas noites e tantos dias

partindo de mim em espasmos desesperados

fujo do ritual que sustenta um mundo inteiro de ilusão indômita

e dormências vegetais e de anátemas fatais

a vida, passei na janela, estagnado,

os olhos olhando o que só a alma via

petrificado de medo

a alma lambuzada de covardia

os amores eu amava sem sair de mim

apascentando sentidos

fazendo e desfazendo mil declarações de amor

sozinho

à noite

sufocando-as, uma a uma, durante o dia quando a via

debruçada sobre o silêncio dos olhos e o gesto do corpo

e os dois botões abertos

insinuando os seios branquinhos de morenos mamilos pontiagudos

buscando carinhos e beijos e línguas e dentes a mordiscar o choro

compungido a soluçar os sentidos

beijando bocas trançadas em sonhos e devaneios

abraçando corpos em solitárias e indeléveis noites

as portas fechadas

os muros erguidos tão altos

o sol espargindo remorsos

na sua fornalha de ouro e fúria

a esfera cega carregando no ventre redondo a boca de um vulcão

amarela

explodindo pesadamente

alheia aos teoremas que definem o que é a noite

o que é o nada quando a noite está ausente

a queda no fosso do que sinto

a fuga derrisória

quando os desertos tomavam conta de mim

eu fugia nos mapas de um atlas geográfico

Sou um homem desinteressante

boa parte das coisas que eu digo não faço

aqui dentro amontoam-se os mundos que eu penso e não faço

tudo que sei é mentir

andando sempre sobre os mesmos passos covardes

brado mentiras da hora em que acordo

até a hora de dormir

minto social e resignadamente para você

minto monotonamente para mim mesmo

isto transforma meu estranho mundo

em letárgico e angustiante cansaço

aprendi a mentir com livros, desgraçados,

que me deram a palavra escura que possuo

que me moldaram os gestos

que abriram as cem portas de seiscentos diabos

e cavaram a minha cova no cemitério da agonia

que me amarraram ao desprezo de pensar

e de sentir medo e vergonha da vida vivida na vida do outro

ninguém sabe

dos gritos entrecolhidos entre a dor e o espanto

das imagens que vêm no vento quando a vida

resgata os uivos e silvos dos morros

que me impingem a humilhante mentira das horas

que me mordem, me roem e, por fim, me matam

cedo ou tarde

conforme a voracidade que a sina tem para mim

e escanchada no dragão da quimera mesquinhamente vai embora

livros que me propuseram sonhos

e acorrentaram-me às chuvas que ateiam fogo à alma

e alimentam a sarça ardente das palavras que fogo nenhum consome

Sou um homem desinteressante

como é desinteressante para um cego

as luzes e as cores enrodilhadas no silêncio insidioso

de mais um final de tarde

Se as tardes ainda existissem fora do engodo da poesia

e da morte súbita do corpo contrito e do tempo que se exauriu

sufocado pelo alarido das horas