Filhos da puta
Os filhos da puta
não são, obrigatoriamente, filhos
da puta
as putas não têm nada a ver com isso
não bastasse ter que se despir dos insultos
recolher os lençóis e as conversas
ainda têm que ser mães
de filhos da sordidez e da concupiscência humanas
os ditos filhos da puta são filhos
do egoísmo arrivista
da ganância capitalista
da escuridão parada e corrosiva onde se estertora a consciência
foram criados num rendez-vous amoral de uma sociedade proxeneta
que os pariram e os embalaram
Putas, corpos cheios de pernas e braços e vaginas
anônimos que ao cair da tarde
solenemente movem-se no escuro estático
engolindo a estupidez das emoções
apenas fuga da realidade impenetrável nas suas contradições
cifras natimortas escorrendo entre as coxas
em camas onde se definha e morre-se
sob o sêmen aparado por um chumaço de papel higiênico
putas, apenas
mulheres presas nos espelhos embaçados pelo suor dos corpos
sensuais paradoxos deambulam como animais enjaulados
bocas e vaginas que percorrem as noites
negaceando fantasias e medos
angústias e solidão
Cansaço de quem já amou a vida
desespero de quem é uma entre bilhões de criaturas
procurando, procurando
por si dentro de um destino se arrastando
ad eternum pela humilhação das horas
tempo vazio vagando entre séculos inconscientes
porta aberta para o espanto embevecido
do que seriamos se a vida não fosse um punhado de dias
sem descanso e sem remissão
insolentes, na essência
Os filhos da puta
são filhos da puta aqui ou em Ptcairn
os filhos da puta do mundo inteiro
só enxergam o próprio mundo
e o canibalismo da tragédia cotidiana
mentem
impunemente
esquecem um sorriso morto e indiferente
naquilo que deveria ser um rosto
magos que são transformam sonhos em desespero
quando a tarde se deita no tapete fofo da noite
e os demônios, fastidiosamente, entoam aves marias ao pregão
enquanto riem euforicamente
ironicamente
dementes
sopesando a mais valia
ensandecidos, procuram emudecer a voz que teima em cantar
adulam a massa convenientemente tola com miçangas e berloques
e fábulas caiadas de cunho moral e escritas com a mão da vilania
invadem nações
o fim de tarde, lenta e dolorosamente, suicida-se no horizonte
o último sangue do sol cai sobre as pedras que sesteiam,
aqui e ali,
enquanto a consecução dos minutos sempre caminham para o fim
misturando num mesmo inferno mortes sem nome
aflição
desespero
prostração
impotência
levam a sua voragem e o seu desatino
aos céus, aos astros e cometas e planetas
e quantos universos possam existir
roubam a paz aos sonhos que, dispersos,
transbordam as sombras escuras que molham a noite
furtam e sugam o que restou do sangue morto e da ilusão esquálida da vida
fincam bandeiras aprisionando em ideologias o brilho rutilante do universo
riscam fronteiras onde há somente rio e mata
e canto de cigarras vaticinando a dissolução das tardes desatentas
e matam em nome de uma falaciosa pátria recendendo à velhacaria
Há um silêncio
e uma inenarrável apatia
na terra do faz de conta
onde nunca é amanhã
e o ontem é sempre aflito
aqui, os filhos da puta espreitam os desvalidos
em sua morte prematura
lentamente
ambiguamente
ração e salários míseros
carcomem a vida e a dignidade do homem já fraco
recostado no escuro das horas ocultas em cada respiração
patética aleivosia
hipócritas
esfolam a alma dos operários suarentos
e suas insondáveis crenças e esperanças
e vão, "consternados", para a televisão
lindos e sorridentes a convencer
sem acanhamentos morais
os crédulos
os inocentes por conveniência
os estúpidos por convicção
a doarem sua compaixão e aplacarem suas culpas, (em Reais)
para esquizofrenias televisivas dos programas de doação
a culpa, esta estranha coisa encubada e amorfa, manifesta-se estabanada
ninguém se atreve a falar em responsabilidades
que é o que os atos deveriam gerar ao invés de culpa
sem o linimento da prece ou da confissão
ou do óbolo arrancado às entranhas da usura
túrgida de sangue e suor
feitos de arroz e feijão com farinha (quando tem)
Putas, empáfia verbal, silêncio, ultraje e pasmo
os olhos acompanhando o dentro e fora da noite
há cinco mil anos
o tempo envelhecendo não espera assombro ou meditação
ou pausa para chorar a sólida dor da vida que pousou
entre o pôr do sol lá fora e o passado sorrateiro aqui dentro
Os filhos da puta são o que são
independentes do ofício de suas mães
e dos conceitos de bem e mal
e dos esqueletos nas prateleiras
os filhos da puta são o que são
sem suspeitar que os insetos morrem
as pedras têm seus projetos e angústias antes de virar areia
entre poeiras, águas frias e jardins
e o barulho da chuva que cai espargindo perfumes
de terra molhada, mato recém cortado, estrelas azuis
e poesia florindo entre a janela e o mar
as aves e as borboletas conduzem as tardes ao ocaso
o azul do céu é o devaneio do discurso interminável dos ventos
A vida é provisória
a vida nasce para morrer
independente dos lamentos
das súplicas
dos ganidos
dos gritos
do pânico
dos sonhos
das ilusões
do espanto
das vituperações
das imprecações
se deixa na vida amor e filhos
ou se parte sozinho, como chegou
espremendo a lágrima à solidão
de ter-se sido feliz ou não
do estertor desesperado das mãos
das crenças
das rezas
das promessas
dos milagres
da religião
dos deuses
da geometria e do teorema
das teorias
pode acabar às seis e meia da tarde
de um domingo quente de verão e praia
quando uma andorinha voa arrastando o fim do dia
por sobre os prostíbulos onde já soa e sua a lascívia
enquanto uma criança vigia ternamente a eternidade que lhe é imanente
as putas mascam chicletes esperando o próximo cliente
enquanto a rua passa em direção à favela,
sem alarido,
contente com o que é
sem preocupações de acabar
enquanto alguém escreve um livro
sobre a injustiça e o declínio moral da sociedade
e os lupanares esperam tristíssimos
a volta da solidão e do silêncio dos homens
de pau duro e seus gozos aflitos