As minhas vidas fui eu que fiz

As minhas vidas fui eu que fiz

com as minhas tantas ignorâncias,

com as ilusões que trago no gosto travo do vinho

bebido nas esquinas do ontem,

com a minha soberba:

fuga e medo,

voragem,

folha ao vento,

desatento,

tolo,

sem rumo,

em letárgica suspensão,

em adiantado estado de degradação,

embriagado pelos prazeres, desejos, concupiscência

vi a vida entardecer sem sentido

vi as vidas morrerem tantas vezes

e tantas vezes, em si mesmas, refletirem as velhas imagens do espelho

vi as madrugadas postas em espedaçadas ilusões

que o escuro engoliu

não posso alegar que não sabia, não sei

o que a minha alma aspira

há flores nas veredas que a chuva matutina teceu

não consigo entrar no riacho sem molhar os pés,

sem sentir o toque firme e macio dos gorgulhos

há tanto passado movendo o presente

há tanto segredo interpelando a solidão das épocas

há tantos mistérios nos silêncios das palavras que voz nenhuma dirá

há os dias que são a expressão das minhas escolhas

o destino dá à semente o que a semente é

o tempo corrompe o devir

e seca as flores da janela abandonada ante o desespero dos tantos pecados

os pássaros voam

carregando o crepúsculo para a poeira das águas

tudo voa, se assim escrevo com minha verdade e meu pranto

e repito no ar o gesto com a mão

mimo todos os sentidos

tudo ilusão

meus olhos estão cegos de tanta ilusão

perdi-me, matei-me, respirando o ópio dos desejos

perguntando o "aonde da realidade?"

e outra vez é janeiro e um vermelho esquecimento

encheu de figuras meu reino

e as noites gritavam sentenças

no escuro do quarto

deitadas comigo

há dentro de mim um mundo sem entendimento,

um sentimento a discorrer poemas, gotas da alma

de quando em quando abrem-se portais

e vultos vão às margens dos rios escolher palavras,

num quase silêncio,

somente um sussurro

sibilando dentro da solidão dos dias e das noites

e dos mundos por onde caminha a verdade

expressando a incoerência fria entre as palavras e os atos

É preciso coragem para deslindar a alma

É preciso coragem e o coração pegando fogo

para o gesto portentoso e inesgotável do inicio

É preciso a inteira emoção inteira para suplantar as fantasias

e o mundo insaciável dos desejos