Tanto dizem de mim

tanto dizem de mim

e cada um a seu tempo e seu gosto

e cada uma com a sua verdade resignada

e cada uma com a sua vontade e propósito

conforme a luz que chamusca seu mundo

sou a palavra dita assim

sem cessar

debruçada sobre o vício

ou sobre a virtude

silêncio entre elogios

e palavras em ruínas

nas horas tardias

que ficaram do outro lado

distantes e sós

qualquer cansaço é sentido

qualquer mistério é refúgio

qualquer ideia é prisão

qualquer discurso é obscuro

qualquer pedra já é muro

qualquer coisa dita é insígnia

qualquer pássaro é este vento

voltando pra casa lentamente

sou o que a palavra consegue

despir de mim

devorando insaciável as notas invisíveis

que anotei no reflexo do ruído dos espelhos

espalhadas em meio ao caos que sou

de tantas maneiras a água desce

e ressoa distinta nesta descida

até encontrar o rio ou o mar

até encontrar as raízes dos pinheiros

e incendiar-se nos fogos da compressão das margens

assim como as águas

sou o que as palavras descem

até encontrarem-me, mar ou rio

de sentimentos desatentos e contraditórios

e evocam ao desespero de quem as ouve

surdamente

ou leem com a paciência prisioneira dos dicionários

sou o silêncio dos que não me conhecem

e nada têm a dizer de mim e, portanto

a eles não sou nada antes que possam me rotular

e frequentar minha vida como um vento árido

e transpor para as minhas dores

as dores que eles sentem

o que sou é o que dizem

os sons cheios de admiração e afeto

ou de desprezo e de um insopitável desdém

sem mais, nem menos

sou como uma noite de estrelas:

todos os pontinhos tiritantes

fragmentos de mundos díspares e oblongos

chuva desnuda caindo numa primavera escura

fazem parte da verdade da noite e seu céu