Um instante e o silêncio
o silêncio recomeça de onde o desejo inclemente parou
e caminha sutil
vindo lentamente da mansuetude repentina dos sonhos
e da alma pacificada
carinho demorando-se nas águas e pedras e na intermitente vida
transpondo a grande distância entre o sentir e o falar
nuvens lambuzadas de azuis e ilusões
cobrem a vida como um alcobaça
cobrem-me e desinventam palavras e obliteram gestos
fecho os olhos
as cores adormecem, esbatem-se
na brisa que passa e respira abandonos
tudo é segredo, sensações e sentimentos
é de imagens translúcidas e de fluida eternidade o meu mundo
os pensamentos, irremissíveis, desnudam palavras
e o sentido das palavras é
fitas coloridas enfeitando árvores na noite escura
acesa pelo vazio de um sol desfeito em clausura
e pelo peso dos borrões de luzes vermelhas, laranjas, lilases
os pensamentos são nuvens silentes que passam e badalam como sinos
em indefinidos momentos que nos ultrapassam
pássaros de uma outra realidade sensível e estridente
antiga e incognoscível
de palavras e signos avoengos que se dizem a si mesmas
novamente me chamam, monótonos e insistentemente
como cigarras ciciando até morrerem
não respondo
os pensamentos retornam como armadilhas estagnadas
de onde vem e permanece o cicio adocicado
como um poema que anda sem pressa
colhendo as flores miúdas da alma?
antes não fosse em mim aquele medo
antes não fosse em mim as padecentes sombras
a dizerem:
"amor, amor, amor..."
sem que haja um som sequer
o amor pôs-se à espera: voo de pássaro em gaiola
poema misto de tempo e ausência de tempo
silêncio
quantos poemas ouvi?
quantos poemas se alastram pela palavra "amor"?
e o homem comum, engolido pelo precipício da pressa,
só enxergou vazio, tristeza e espinho
um rio, com voz seca e larga, canta o movimento dos caminhos
a musica se repete indefinidamente
sem pressa
as águas, costuradas à correnteza, carregam o assombro
e a suavidade das paisagens delineadas a nanquim
retas, curvas, ângulos, círculos e semicírculos
dentro do vento
as letras prontas e abertas
esperando o aconchego calado dos versos
enfim
sinais
para que se sentisse e se soubesse que
para se dizer e escutar o amor basta um instante
e o silêncio