Pensamentos para enxergar a noite
Fingir ser poeta...
escrever e descrever
antes que se dissolva tudo
que se tem para dizer
no branco acuado do papel
no branco enjaulado da tela
que se pode escrever antes de prosseguir
meio distraído
a moer as horas ingentes e incognoscíveis
nuvens de areia
lua cheia de um deus
relva incendiada pelo sereno
e sumir como quem se volatiza no ar
e se precipita nos abismos das aparências
e seguir por conveniência
leniente
e escrever...
devorado pela alma antiga que me confronta
e escrever...
como quem anda na chuva a regar o jardim
hipnotizado por tiranos mistérios
para enganar a morte
para enganar, atônito, mais um dia
enganar o próprio esqueleto
antes que a ausência da alma
pareça um traço negro dentro da noite
se alastrando pelo nada que roça a minha janela
sem palavra, nem gesto, nem voz
antes do fim boquinegro
riscar o branco com imagens miúdas
devagar
divagar
soprar o entardecer
saciar as eternidades quotidianas
de uma existência ilusória e sem sentido
recomeçar sem um céu
para habitar éter/na/mente
sem anjos
e sem ter para onde levar minhas
falaciosas perguntas doídas e ingentes
enquanto dezembro não chega
e a boca seque dizendo em voz alta "liberdade"
chega de pensamentos
o tempo de pensar já passou
sem que houvesse salvação
já pensou-se
já perdeu-se
sobrou somente o peso do susto
sem nome
a coisa
e o espaço por onde fogem os sonhos
no exato instante em que se fincam as certezas
pensar não presta
vai suscitando dúvidas e mais dúvidas
ao invés de resolver os enigmas
insolente
calmamente
até me ver chorar
nas espirais das esquinas da vida
sentado só no banco do jardim
onde a luz dos sol desiste e afunda
prendendo as figuras que escorrem dos espelhos
ao vento agitado
impaciente
de repente a desolação se pergunta:
as nuvens são bobagens de algodão?
elas simplesmente se desfazem
como estes poemas cheios de nada e vácuo e demônios?
as frases antes de dizerem deveriam cantar
sem mais nem porquê
o medo antes de paralisar devia largar a alma
o espírito
o terço
devia esquecer o passado
e o cheiro de mofo do mundo
esquecer as profecias
e a contramão da madrugada
indo embora
e levando as indagações e o sonho
para não tropeçar no enforcado
a questão não é "ser ou não ser"
a questão é o desespero exilado do medo
a questão é parecer
perecer
uma morte apurada
atraiçoada
pesando nos olhos sua foice de chumbo
e inclemência
interrompendo a cantiga de suster os dias
demorando o silêncio
o grito sólido em volta da garganta
um abraço caindo sobre o tempo
e a poeira negra nos livros
a dúvida
a vontade
antes mesmo de morrer
sem ser poeta por um instante que fosse
esta forma estranha de vida
este vaga-lume piscando verdes palavras
sensações
vertigens
cansaço
vidas e mundos pensados pra não morrer
fuzilado no paredão dos dias
que brincando de artilharia passam por mim
na eternidade da memória das noites
que se recolhem a algum lugar
escuro, insone e afastado
por detrás da face erma do sol
pra lá das fronteiras dos dias
e do complacente olhar
que vê parte do mundo
se acabar num momento
tocado e morto pelo elementar
movimento das galáxias
que traz no tempo a condenação
impotente do fim
ouvindo os acorde do caos
finjo-me poeta
dentro da gaiola do homem
e reviro e esfolo a alma que não tenho
quero a dor doendo num canto fluido
desculpe, mas quero chorar pensando nela
todo o amor se compreende
no discurso do pranto esperando a noite
para dizer tanta vontade suspirando
para tentar dar voz
a insondáveis esperas
a vestígios da inércia que há em mim
quem dera a poesia fosse
imersa no fogo e na força
da essência que cria constelações
e que me criou sem dizer
das vozes que me arrastam com uma ventania
quem me dera que os poemas partissem
nas galés do destino
partissem sem dizer nada ao vento
e recomeçassem
como recomeça a ilusão diuturna
imotivada
estranha
incognoscível
e incomensurável
a nos levar pela sentença da vida
amanhã minhas mãos acordarã
misturando realidade e fantasia
fingindo serem poetas
e continuarão escrevend
empurrando letra após letra da borda do precipício
com gestos brandos e adocicados
com suspiros entrecortados e profundos
quando dá essa vontade louca de morrer
e todas as palavras já estão nos livros
um ruído sem peso
um arrepio sem tentação
esperam a ternura tratar a ferida do sonho
e a palavra sozinha dentro do papel que o vento leva
parar de falar
enquanto não sinto nada
enquanto queimam as labaredas
distraindo os olhos cansados
de ver tanta noite e tanto dia
e tanta loucura sem miolo
dizendo fuja
enquanto todas as coisas
de todos os mundos que surgem e somem
dentro do mistério
dentro da reverberação de um milésimo de segundo
num instante onde o teu encanto
tem o tamanho justo da minha sede multifária
dos meus cinco sentidos
numa solidão caminhando pelas páginas
onde alguém escreveu "amor" "barro" "fim"
a fumaça doce do tabaco
misturada à sombra escura
que habita os olhos do homem só
e a sua suspeição de uma lágrima divina
doendo uma melancolia que vinha nas nebulosas
fios e trapos extraviados das estrelas
há bilhões de anos cativos da dor da origem
e do grito regurgitado no núcleo do buraco negro
que dizem todas as coisas tão distintas e conformes
definitivas como antes do presságio do destino
condenadas a serem só imaginação e sortilégio e vícios
de um deus-poeta insonte
embriagado e sonâmbulo