Houve um tempo

Houve um tempo

Em que havia flores o ano inteiro

O sol cheirava a janeiro

Estrelas acendiam luzeiros

A música vinha do rio

E o rio era o diapasão da vida

Destino, Necessidade, Sabedoria da Transformação

Houve um tempo

Em que não se precisava esperar papai Noel

A vida era o presente de todos os dias

E o brinquedo mais interessante

Mais do que pular ondas no mar

E carregar baldinhos d'água para erguer castelos na areia

A vida era cega, terna, doida, insonte

A vida era pra ontem

A vida era incomum

E amor era o nome de todos os dias, de todos os meses

E de ternura chamavam-se as eternidades dos anos

Por entre calendários rabiscados de tempos e gestos absolutos

Houve um tempo

Em que o vento soprava recados teus

A chuva caia e se molhava e se banhava toda

E se acumulava nas poças do quintal refletindo um pedaço de telhado,

Uma nuvem encardida pela tempestade,

O sonho nos olhos, o beijo nos lábios,

O silêncio e o medo do silêncio

Houve um tempo

Em que os pássaros pousavam na janela

E trinavam inquietos, miúdos e maviosos

A janela já não há mais

O dia já não levita ao gorjeio dos pássaros

Tampouco é mais a incoercível fantasia

Ainda hoje se ouve o trinar dos pássaros,

Mas são outros pássaros,

Outro tempo

Houve um tempo

Onde havia princesas e castelos

E a vida evolavasse da solidão do sol

E do amor que estremecia feito versos entre os meus dedos

E onde borboletas declamavam os dias

E beijavam flores

E sopravam os ventos

Trazendo o entardecer

E o pranto argênteo da lua

Houve um tempo

No qual giravam carrosséis coloridos

E rodas-gigantes amarelas

Houve um tempo

Onde havia você