O mundo vaza do meu peito

morre-se!

morre o inseto que vive horas

morrem os mundos que vivem zilhões de anos

morremos um pouco todos os dias,

lentamente,

e está trancada a incognoscível algaravia da vida

no fim, tudo é assim, tão igual

sonhos, desejos, apegos, ilusões, egos, paixões,

a confusão dos sentidos

tudo tão banal

findo o caminho o que sobrou?

sobraram as pedras, as nuvens, as árvores

ao vento

sobraram os pássaros e a música do ruflar de suas asas

chamando as noites

abrindo as janelas para o escuro das noites entrar

sobrou a última flor inescrutável,

volitiva, dentro do instante

Talvez restem as ruínas do sonho?

a morte ao fechar os olhos mata o sonho?

o sonho me traz de volta e bota-me a caminhar

os mesmos enganosos caminhos?

as folhas secas ainda estão na beira da estrada

caminhos que já passei

as flores todas, sabedoras do mistério, não dizem nada

preparam com essências e perfumes a certeza da noite incomensurável

a tarde derruba o sol

silenciosa e inelutavelmente

a vida adormecendo

céu e lua e estrelas tantas vezes já vistos,

porém nunca os mesmos

o mundo vaza-me do peito

de repente tudo é lembrança, ausência e tardes trêmulas

faço tudo de que não preciso

amo o engano e os liames dos sortilégios e de tantas memórias

ando desertos incendiados de desejos

mergulho na inconsistência do sonho de agora

que me trouxe até aqui e me deu um nome

e me tornei o que não sou

mais uma aurora depois da noites por onde andei

colhendo e semeando o que a minha mente discrimina

se não sonho podia ser uma estrela

se o sonho se rompe invade o mar inconsciente

naquele instante em que ser mente

minha alma não sonha: diz saudades

como um grande sol lilás depois da chuva

como o silêncio da última gota de chuva que cai na solidão do mar

o sonho não é o que sou

o que sou

fica para outra hora

fica pra daqui a pouco

fica para o mês que vem

o ano que vem

quem sabe pro século seguinte

pro milênio seguinte

numa outra vida

que se tudo correr bem

vai começar em 3020

em Liechtenstein

ou Santarém

se chover na Indonésia

e Urano estiver

em conjunção com Marte

se a fumaça vier junto com o trem

se um dia for de todos os anacoretas

se o outro for de ninguém

só se a dor doer faminta

e a noite sozinha doer também

em 3020

na penumbra da primeira noite

entre retalhos da lua cheia

e da adrede estrela de brilho risonho

darei ao silencio tudo o que tenho

e tudo que tenho é tão pouco:

um grito que nunca gritei,

as asas que nunca usei,

a obra inacabada do meu destino,

a janela milenar onde minha alma

se debruça a olhar os transeuntes

e os pássaros procurando ninhos

no final da tarde,

quando a luz se esvai esbatendo as cores

um amor que me encharca a essência desde a infância

em um coração antigo, de antigas vidas

sem saber que era poesia

e o tempo passou folheando

este livro de páginas em branco e versos por fazer

me deixando só diante do mistério

por que é 3020

e o que sou tange o passado

como a semente ao fruto

como o tempo tange o instante

e de agora em diante

o que serei é o que realmente sou

é do que sou que me componho

na boca nenhuma palavra

nos olhos nenhum choro tristonho

que a vida prosaica é inaudível

que só há vida no caminho silencioso

e turbulento onde se deslinda a ilusão

e o coração, então, se aquieta, em paz