Pingo

A noite insone e sozinha não me deixa dormir,

busca entre as sombras dolentes um confidente

que possa ouvir tanto silêncio

Me acorda na madrugada

Quem sabe o que quer comigo?

Vou à sacada

Acendo um cigarro

Acendo lembranças,

abrindo o sonho com as mãos

Sinto a brisa arrepiando-me o corpo como faziam

a mulher amada e a volúpia dos seus orgasmos

Na noite insonte tudo que vive cicia a carícia de um nome

Teu nome que não termina e retorna e me acha e me chama

e me deixa nostálgico por demais

Sentamos, meu coração e eu, na beirada da noite para te ver chegar

e repaginar tanto sentimento

Penso em você e borboletas voam no rastro da imaginação

Abraço a lembrança como abraçava você

Escuto a tua voz de menina dizendo no meu ouvido:

"vem, anda beijar meus peitinhos"

Teus seios castos que cabiam inteirinhos nas minhas mãos,

na minha boca e que couberam pra sempre na minha vida

Cabiam exatamente nos beijos que eu só tinha pra você

Teus peitinhos despontando na saliva morna das tardes de um tempo

que pôs você em mim e nunca mais você foi embora

Tua nudez melodiosa deslizava na minha nudez ávida de ti,

montava em mim,

me engolia,

sem pressa,

se derramava em mim

indecente como a cama no chão

como o desejo que vai da boca pra mão

Tua nudez esquecida do vestido e da calcinha,

com lacinho na frente e bichinhos estampados,

tatuou os meus sentidos com a brasa incandescente

do teu corpo fogoso,

do teu desejo enchendo de súplicas os nossos dias,

do teu beijo rubro que murmurava o passado irreversível

latente dentro de mim

Na noite fica este aroma de nostalgia

Todos os ventos silenciam e a folhagem estanca

É tempo de solidão

Tempo de eternidades revolutas

É tempo de escrever novamente o teu nome nos muros

das casas do bairro

Psiu, psiu, menina dos olhos que apagam a luz,

meu coração precisa urgentemente

pegar, afagar, beijar tuas mãos,

como eu fazia, borboleta amarela namorando o jardim em plena primavera,

enquanto a vida tecia, à sorrelfa, a saudade

que ali adiante me esperaria

Um aperto no peito soa

e se esparrama como o teu cheiro se esparramava em mim

A lua dorme na relva de nuvens e não vem espiar os meus olhos lacrimejantes

Mas, eu canto

Cantarolo, só pra mim, a canção que te despia e te absolvia de todo pecado

Não importa se a canção traz de tão longe tanto beijo,

tanto latejo,

tanto roçar,

tanto desejo

tanta luta,

tanto suor,

tanto dedo,

tanta mão,

tantos ais,

tanta inocência

Eu canto pra tua ausência presente dentro de mim

Eu canto mesmo assim

O ar é só brincadeira dos pássaros meditando a manhã

Os pássaros trinam segredos azuis e brancas formosuras

Tudo como na primeira vez

Se houvesse o tempo

A cidade ressona

Um carro, boquirroto, se repete em seu som modorrento,

segue exausto o seu curso,

sem eira, nem beira,

doendo nas curvas metuendas e rascantes

Há plenitude no quase silêncio que alumbra

No indistinto silêncio efêmero estremunhando o mundo

No quase poema

No eterno dilema

entre pintar ou bordar com você

Com você, no nosso mundo, eu pintava e despintava

bordava e desbordava

beijava e desbeijava sua nudez de menina

e vadiava contigo até nossos desejos ficarem quietos e calados

e a taça borbulhante transbordasse de tesão

e o amor trouxesse o cansaço

e você dormisse em meu braço

o sono sem pecado da criação

Meu mundo,

assim percebido entre a noite elementar e o nada absoluto,

quieto como um furacão que se arma na vã placidez do passado,

pergunta, gesto ou tremor subentendido,

escondido

meu mundo, arquétipo involuído dos meus medos,

por um instante inebria-se em rumores e em travessos segredos

que confabulam palpitantes o que fui:

menino sem razão,

transido de liberdade,

que nunca vai morrer de coisa à toa

apaixonado pela menina da rua

embriagado pelos seus pulsares

e a noite que dorme nos teus olhos negros

Confabulam palpitantes o que sou:

um homem sonhando amores adolescentes na madrugada silente

buscando em meio ao negro da noite os olhos negros de Pingo

Pingo d'água, Pingo de amor, Pingo de fogo

Seria Pingo só por ser pingo de gente?

Pingo, passaram-se dias e noites,

alguns ficaram em retratos,

outros aos poucos enlouquecem,

andam em círculos,

escrevem cartas com canetas de tinta invisível

bebem saudades,

deglutem o tempo...

não sabem, querida, que o tempo não passa para o amor