A vida não dorme

O vento, irrequieto, gira revoluto

Misturado à noite translúcida e singela

Arranhando as treliças da janela

O som ciciante do vento na janela me pesa nos olhos

Adormeço

Não sou feliz, nem sou triste

Adormeço e a vida, com suas horas inúteis e sua danação, para

Durmo enlaçado à última palavra

Que a mão derrubou na folha, eu já quase adormecido

Durmo enlaçado aos vendavais

E aos redemoinhos espiralados no bulício dos quintais

Que não dormem em tempo algum

O sono preenche o quarto e a mim de escuridão

Nem sonhos nem pesadelos nem mundos outros

Vêm me pegar pela mão

Tudo calado e numeroso escuro

Meus olhos estão cegos de tanta noite

Em cima, embaixo, ao redor de tudo

Escuro, escuro, escuro...

Pra que escuro tão grande para uma vida tão pequena?

Minha alma deitou-se nua e possuiu meu sonhar

A noite amarelada apartou o medo que me repete desde menino

E me esconde durante o dia

O medo enrodilhou-se do outro lado,

Junto aos pecados e à impiedade

Medrando a vida desperta

Repleta de uma realidade imposta e impostora

A vida aflita e miúda, antiga, hipócrita e demagógica

Ainda é cedo para se derramar as lágrimas sem culpa

A madrugada veda os vidros miméticos das janelas

E as suas mixórdias de sombras e sons

A cidade dorme, ressonando o chiado dos carros

E resfolegando o cansaço das ruas

Os homens abastados dormem, subjugados e felizes com seu ouro,

Com seus carros, seus cartões de crédito,

Conta fria no estrangeiro e suas mulheres impolutas

Os homens humildes dormem, subjugados e felizes,

Com seu arroz com farinha, de vez em quando feijão,

Com seu café requentado, seu pão duro e adormecido,

Sua marmita de flandres, dentro, por cima de tudo,

Um ovo estrelado, por baixo e em volta o resto de ontem

As sarjetas dormem, fétidas corredeiras do luxo

Que a cidade venera tornado em lixo

Os cães ladram baladas dolentes para que um outro cão responda

O desconforto agônico não dorme jamais

Na madrugada opalescente lampeja o verde de um vaga-lume

Uma criança chora o choro, que o peito da mãe calará?

A alma palmilha a migração dos pássaros e a giração dos mundos

A aurora espera no escuro

Espera, distraída, o esquizo dia sair da caixa do remédio de tarja preta,

vestido na bula

E assim dizemos com arrogância e douto saberque a vida é como é

É hora do desassossego cavucar e cavucar

Para ver se alguma coisa acontece

Faz anos que nada acontece nesta sesmaria

Só mesmo a sina e o destino para medrar tanta letargia

Sob o olhar triste, remelento e medroso dos moleques dos semáforos

Calma, não vamos desesperar

O vilipêndio está lançado à terra fértil, um dia vai germinar

O cão dormita sob a escada

Travesseiro de si mesmo

Em volta o vulto do vento se acumula e zumbi

O Universo, por estas bandas de cá,

Dormita sem descuidar dos filhos seus

A bilha ao alcance das mãos

O Universo nos olha pelos olhos humanos de Deus

O céu marisca estrelas

O abacateiro, lá no fundo do quintal,

Derrama sombras e sons de folhas e galhos

Num vozerio ininteligível e insistente

As pedras da rua bebem a lua

Um bêbado, sonolento e vacilante

atravessa a noite ziguezagueando desgarrado da chusma

anestesiada e dócil

Tosse e balbucia palavras engroladas para um ouvinte ausente

Adormece na calçada, hotel com milhares de estrelas

Sem mais perguntas nem filosofias, a não ser as que deixou no bar

Enquanto durmo ruminando o sonho cenobita

Que ao raiar do dia a vida rediviva, atada ao sol,

Me entre pela janela e me acorra de tanta dúvida e medo

E não se esqueça da minha dor sem remédio

Do escuro que, seja noite, seja dia, se alastra em minha alma

E sufoca com tanta tristeza e tanto vitupério

E não me faça mais chorar

Só não me faça chorar

Debaixo da escada o cão se coça sem despertar

Talvez sonhe com o osso que a vida há de lhe dar

O gole d'água

E uma sombra inerte pra voltar a descansar

O peso desta vida de cão

A madrugada sonolenta boceja diante do discurso das horas

O incriável, o inominável,

Toda a beleza do mundo flutuam como uma pena no ar

Como o azul sobre o mar

Como o amor que te ama

E que te leva pra passear

E que te leva pra cama

E flerta com os teus lábios

E os desenha com os dedos

Estremece

O beijo pejado, tirado às páginas de um livro

E cartas cheias de amor

E algumas iluminuras, palavras para enfeitar o que vivo te dizendo

O amor, fragmento de Deus, também flutua no ar

E em sonhos se apresenta tirando a roupa aos amantes

Insinuando-se, unindo amados

E sequiosos, molhando de tanta tentação camas a corpos

Deve ser assim

Me embriago

Amo a cruz e o pecado

Ando sobre a areia quente dos medos

Por não vislumbrar outro caminho

Ando ganindo, com os olhos tristes e sozinho

A vida não dorme, dormita

As estrelas põem brincos na noite

A lua perora no céu suspiros prateados e versos meneantes

Cabe ao vento revoluto versejar as pétalas das flores

Depois que o dia raiar

Antes do mar secar

Depois que a felicidade voltar dos campos pendoada de sonhos

Depois que a chuva cair, tamborilando nos telhados

Depois do beijo na nuca

"Eu te amo", digo às mulheres que ficaram em mim

Acordo para o dia amarelo

Num tempo antigo

Anterior aos dinossauros

Anterior à palavra,

Mas, já cheio de espantos e de sentimentos

Chove

A chuva é hoje, é agora

Sinto falta de uma poesia que fosse minha

Queria tanto dizer: "Chove! Amo a chuva e quem chove"

E que isto dissesse tudo

Fosse espelho e provocação

E tudo que era era segundo a sua natureza e seu devir

O mundo, sabático,

Medita,

Sofisma,

Sopita,

Mas, não dorme