Quarto de Retalhos
Ali naquele quarto de paredes rachadas
Cinzas de cigarro e mancha de vinho pelo chão
E um colchão embolorado sem lençol,
Há dezenas de amores estilhaçados
Em centenas de noites perdidas em febre de vida
E auroras ilustrando o silêncio em pálpebras lânguidas
Embriagadas pelo cansaço da fruição de amar
Os corpos, o álcool, o fumo, a poesia,
A vida pura que pulsa nas madrugadas
E morre de overdose de si mesma todas as manhãs,
Ali naquele quarto de furo no teto,
Escrivaninha improvisada e centenas de papéis amassados
Há milhões de idéias nunca realizadas,
Centenas de poemas não terminados
E temas jazzísticos nunca anotados
Tocados somente uma vez,
Ali naquele quarto de porta de lata
E janelinha de vidro com cortina preta
Presa com pregos e tarraxas
Há conversas de telefone com duração de um ano,
Estudos de nem sei quantas ciências,
Filosofias que abraçam o oriente com o ocidente,
Lugares para fora da galáxia visitados
Em sonhos arquitetados para mascar a solidão,
Sim, há muita solidão, muito choro e desilusão,
Há dor em demasia por haver a vida em demasia,
Há desespero intenso pelo excesso de paixão,
Há um vale de lágrimas em trovoadas de prantos
Como uma constelação de sorrisos
Ecoando risadas no esplendor do infinito
Que evapora nas lembranças como um quadro impressionista,
Ali naquele quarto abandonado em memórias
Onde a discografia de Davis e Coltrane
Meditou na pausa do êxtase,
Onde a lua mergulhou e ardeu em garrafas de vinho
Para fundir as almas,
Onde a loucura gritou na íris invocando a morte,
Onde a arte libertou para escravidão de servi-la,
Onde a doçura das carícias fez contraste
Com a brutalidade da paixão,
Onde o amor se rompeu para virar a clínica da indiferença
E onde a certeza foi destruída pelo assombro
Da capacidade intensiva de amar,
Ali naquela atmosfera de esquecimento
As ruínas tecem uma poesia constante
Com pedaços de vidas que ali foram abandonados,
Um quarto de retalhos efêmeros
De escombros nostálgicos
Que a saudade visita para fazer poesia
Lembrando-nos que nada é mais belo
Que as coisas fugazes.
14/12/2014