Coisas que pensei, vi, vivi, ouvi e morri

Nasci para o mundo

Tarde demais

Vou morrer

Nasci como nascem as manhãs

Vou morrer como morrem as estrelas

Trazido pelas mãos da aurora

Autofágico e engolfado pela ventania

Ou pela mão atroz da sina

Hei! você, toma este punhal

Vai pro fundo da caverna

Livra-me de mim

Que a minha voz não se cale

Que o tempo me seja ameno

Me ensine

Dê a feição de um Todo às várias partes de mim

Me nimbe

Reflito sobre a loucura e a sanidade

Se eu chego um pouco mais tarde

uma das duas já tomou conta de mim

Do meu jardim

Onde brotam flores de papel

A chuva que chove nas flores... é de papel serpentina

O vento que embala as flores, volátil e leve, de papel também é feito

O trinar dos pássaros que me comove, é de papel pautado pra guardar som e arpejo

De papel é minha face,

Meu tormento, meu destino

De papel é o chapéu do menino que corre e sonha dentro de mim

Minha menina é de papel crepom e tem negros olhos de cartolina,

minha menina

Os crepúsculos dos dias

E o sol que me ilumina, de papel também os são

De papel minha alegria,

Minha poesia

O tremor que há algum tempo se esqueceu nas minhas mãos

Meu sentimento banal

E de papel picotado é o meu discurso

De papel carbono a minha personagem

en el gran circo del mundo

sem lona e sem picadeiro

abarrotado de bilhões tão parecidos comigo

A vida escrita, em meio ao rebuliço,

é guardada em maços de papel almaço

Meu susto rabisco, traço e esboço em papel vergê:

Grite agora ou cálice para sempre

Calo-me

Morro-me, então,

desempenhando o papel de saudade

figurando no papel de solidão

Aqui fora tudo fica tão calmo

a morte é dissolução

Aqui dentro, textos, poemas, poesias,

elegias, madrigais,

bilhetes, cartas, rascunhos,

os tratados que pensei, mas não escrevi

farfalham

trescalam

as imagens de tudo que eu não vivi.