Cara a cara

O garoto cresceu. Amadureceu.

Segurança. Estabilidade. Certezas.

Passaram ao largo.

Longas pausas, vazios transbordantes,

Saltos e sobressaltos,

acelerações,

paradas,

quedas bruscas,

vertiginosas.

Tudo de uma só vez

para quem tinha sempre braços a ampará-lo.

Tudo foi surpresa,

dissonâncias,

tensão,

choque.

Aos poucos, tornou-se um homem comum.

Carregando numa só maleta

problemas diários,

Pequenas ilusões, alegrias,

risos contidos,

lágrimas teimosas,

E, mais, as exigências pessoais.

Enfim, como homem comum,

Morria um pouco a cada dia.

Uma vez ou outra,

o acaso e o imprevisível apareciam.

Num vislumbre de esperança.

Duravam muito pouco tempo,

Menos do que a eternidade.

Vinham sempre em dupla.

Duplas incríveis na ânsia da vivência:

Felicidade e desânimo;

euforia e tristeza;

projetos grandes,

fatos miúdos.

No mais, uma enfadonha linearidade

de cujo fio tentava, em vão, libertar-se.

Como todo fio da vida, era feito de uma fibra

a qual não conseguia arrebentar,

pois sua natureza não lhe pertencia.

A muito custo acomodou-se àquela continuidade

Embora quisesse outros eus e novos destinos.

Acatava as sensações como vinham,

Libertas de sua intervenção.

Acatava-as, simplesmente,

não se violentava.

A oficina da vida restava inerte e vazia.

Até que um dia, tropeçou

E, cara a cara com as palavras,

Encontrou, em frangalhos, uma brecha de saída.

Agarrou-a ofegante.

Sem pudor, num instante,

deletou o passado inteiro.

Esperou o tempo de gestação

do novo eu.

Ficou feliz com o resultado.

Não era mais um homem comum.

Nem morria mais um pouco a cada dia.

Anna del Pueblo
Enviado por Anna del Pueblo em 27/02/2015
Reeditado em 27/02/2015
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