Os outros que há em mim

o que é que eu falo para estes outros que há em mim?

como mostrar a eles que as escolhas estão erradas,

que os caminhos escolhidos não andam nem levam a nada?

andam a tatear tristes mundos

lancinantes noites

dias profanos

cada um com seu atavio

cada um com sua algaravia

cada um exigindo precedência

"há vozes no meu quarto

que pedem mais do que posso sonhar"

diz Mia Couto

e assim me calo

e assim ouço a eternidade

a lua que vejo agora não é igual a da última vez

quando meus olhos choravam a minha ignorância

a flor que toco é lá na infância

onde borboletas voavam sem asas

e eu, ignorante, as tinha nas minhas mãos

ainda hoje tenho presa a minha alma por um cordão

o que é que eu falo para estes outros em mim?

que mentem

enganam

adulam

dizem que sou o que não quero ser

e não sou

e nunca são

se não desespero e dor

imploram carinho, atenção

se despem e se prostituem por qualquer meia dúzia de palavras vãs

de frívolos sorrisos

comem as migalhas que caem das mesas e das camas

regurgitam o destino

despertam e sonham o pecado

tonteiam-me

olham a tropeçar na infinita cegueira

que direi a estes outros?

para que acordem do sono

do sonho fútil que devora a vida

do engano

que veste de desejos o mundo

se quem sonha sonhos cativantes não deseja ser acordado

que dizer a eles?

que olham para não ver

que pouco ou nada dão a vida

mas, que tudo querem ter

duas palavras, salamaleques e um mimo

compram a submissão

ao escravizante prazer

que dizer?

que dizer?

aos meus outros viciados

arrivistas

prostitutos da existência

que dizer ao Divino que em mim habita

e que é o meu verdadeiro Eu?

que dizer para a vida que envelhece dentro do espelho?

que dizer para o rio onde minha sombra se banha?

para a ingenuidade extasiante da flor na janela?

como abrir as portas sem que o escuro não entre?

que dizer para o tempo que me espreita?

que dizer para a mulher que comigo se deita

para atendermos ao rogo da luxúria,

para preenchermos o vazio sem gesto,

o insuportável nada

e tentar elidir

e esquecer o medo?

poderia usar qualquer droga,

se tudo fosse tão pouco

poderia ficar louco

dissolver a Divindade no caos

rasgar a alma em pedaços

rasgar o mundo vidente

e os mundos duvidentes que desconheço

pôr para correr os demônios

correr, tropeçar, rastejar

cansado

na sede beber cicuta

chorar o infinito

depois inspirar fundo

enraizar o corpo na terra

fazer a eterna guerra

até deixar de existir

motivos para chorar

qual a palavra indizível,

alheia e tão semelhante a minha voz,

que possa iniciar o indispensável diálogo entre nós?