Querida

Querida

 

Diz-me, querida, do que

na vida deixei de ser.

 

Deixemos de lado, por pudores antigos,

as cenas picantes, os gemidos fingidos.

 

Aparta, também,

dos sonhos a morte

e das crianças o choro.

Fala-me de interioridades,

profundas e alheias ao amor carnal,

das coisas sem conhecidas idades

guardadas no pálido banal.

 

Fala-me dos deslizes meus

do olhar, do calar, do fugir.

Dou neste momento a ti

a voz da finalização

dos nossos dias

e dos nossos desamparos.

Conta tudo, defaz-te

de minha presença visual

e fala de meu outro eu,

daquele que não te amou

o quanto prometeu.

 

E num franzido te direi,

neste silêncio amador,

que nesta não imaginei

entregar-te tão pouco amor.

 

Poderias ter um, ou outro.

Tiveste, com prazer e dor, os dois.

E se quiseres tudo esquecer,

convida-me ao esquecimento.

Leva-me contigo ao menos

no teu entorpecimento.

 

Pois breve estaremos

juntos no sedento pó,

esquecidos e esquecedores

das vidas e das mortes

que ganhamos e perdemos.

E doídos estaremos do tanto sentido

e cambaleantes no quanto sofrido,

como pássaros cansados,

de asas combalidas

e bicos entristecidos,

sem pouso certo,

sem ninho aberto

e sem nada além

de inapagáveis lembranças

de calor e de distâncias.

 

Diz-me aqui, querida,

da morte da vida

e, havendo sorte,

da vida da morte.

 

O mais que se guarda

dentro da jornada

são temas ruídos

e bem esquecidos.

 

Diz-me, querida,

conta-me tudo

enquanto há vida

e estou tão mudo.

 

Diz-me tudo, minha querida,

pois é breve minha partida.

(Do livro "Monólogo do poema ensanguentado", disponibilizado em pdf no blog https://monologodopoemaensanguentado.wordpress.com/ .)