Tenho medo e invento

Tenho medo e...



invento este silêncio tonitruante,

indecifrável imaginário

Invento horas e dias me manietando à prisão

Invento o escuro da noite

para o sono dos meus olhos cansados

Invento janelas oblongas e vazias

sem floreiras nem beirais,

sem paisagens ao longe

Invento jardins sem flores

Invento flores sem cores,

sem perfume,

a flor cheirando a estrume

Invento a sede de respostas,

por pequenas que sejam,

mas que sejam verdadeiras

Invento a rede

para embalar um poema

Invento a tarde

esconsa pelas sombras

que se deitam pelos cantos

Invento um céu sem estrelas

Invento estrelas sem céu

Invento o vento passando,

derrubando meu chapéu

Invento um mar origami

para os meus barcos de papel

Invento um sol álgido e escuro

Invento a lua pardacenta e fatal

Invento a sombra subindo pelo muro

Para que peses e ponderes

invento o bem e o mal

Invento a pedra sensível

Invento a dor autofágica

e palatável

Invento a culpa,

o grito

Invento um Deus arrivista

Invento o papa anarquista,

meio proteu,

meio artista

Invento o tempo macambúzio

Invento olhos vazados para não ver

Invento a fome e o dente

para mastigar lentamente

os restos que caem das mesas

Invento a dúvida

e desdigo tantas certezas

Invento esta côdea mendiga e mofada

Invento a personagem que vos fala

sem dizer nada

que vos toca,

que vos mente,

tão vil e sinceramente

A personagem indolente,

imarcescível,

demente

Em contra partida

a vida me inventa incognoscível,

maniqueísta,

dual,

entre o claro e o escuro,

sem lastro sem porto seguro,

entre a sombra e a luz,

infame

A vida e suas garras de pus,

A vida rampeira,

indecente,

traz consigo este gosto afogado de mar,

esta razia de opostos

traz o inferno sulfúreo

e sob a névoa a euforia bipolar