Cisma da noite
Houve um tempo no qual
o sol abria e encerrava o dia sem palavras,
lírico e imarcescível
gestos insontes
Houve um tempo no qual
o amor fazia-se audível entre os silêncios
das tardes que ardiam em rubras cores
face e máscara, luz e sombra
dando contornos à noite
Houve um tempo no qual
o céu jungido ao mar
era o começo do céu na terra
era o começo do mar no ar
Houve um tempo no qual
a poesia lia os meus dias
e escrevia, escrevia, escrevia,
nas pedras que sustentam
e que separam
as terras e os mares do mundo
Houve um tempo no qual
a canção era o silêncio
e o sentimento dedilhava as tessituras
do amor indiscernível
como alegoria em meu corpo
Hoje as palavras estão gastas
restaram, teimosamente, alguns versos por fazer
restaram muitas perguntas e vicissitudes
que a cisma da noite traz,
alheia às sombras que já dormiam
Hoje o dia amanhece com o seu tanto de assombro
os pássaros cantam promessas
o dia é folha em branco que estremece à brisa
e o passado é como um lago
onde vejo a circunstante aleivosia do mundo
mas não sei o que lhe vai no fundo
O passado, como forma verbal e temporal, passou
eu passei,
tu passastes,
ele (o passado) passou
passaram os textos e as cartas insondáveis
sonhos contidos nos textos e nas cartas também passaram
nós passamos,
vós passastes,
eles (os sonhos) passaram
O passado, passou
os pássaros, indiferentes às vilezas humanas,
gorjeiam como fazem a bilhões de amanheceres
fastos ou nefastos,
apascentando o meu presente (brinde, dádiva, mimo, oferenda, oferta)
transbordando de trinados o meu silêncio
e o meu destino