Travessia
O poema atravessa
como lâmina afiada
o silêncio pesado
que cresce da fala
o trabalho da manhã
ainda não concluído
desta muda linguagem
de sons e fonemas
roídos mecanismos
engrenagens da língua
do sigilo quase mudo
em nossas bocas cheias
de meias palavras
palavra, enigma do som
ainda não pronunciado
cuja sintaxe ainda jorra
como jorra clara a água
da seca fonte da ilusão
que nunca sacia a sede
e jamais extingue a razão
de outras palavras vazias
em seu magro conteúdo
contudo quase tão belas
como uma manhã amarela
palavras ainda livres
de qualquer significado
verbo que nasce calado
letras que formam sons
mas jorram frescas da fonte
atingem o céu, o horizonte
as mesmas palavras belas
nascem de qualquer lugar
fonte de coisas puras
ainda sem nome, sem par
fonte de sons, de coisas
ácidas, alucinadas, ávidas
por formarem versos tortos
por atingirem nossos corpos
e expressarem nossos sons
sons que nos impelem à fala
a mesma fala, soturna
que nasce de qualquer língua
do fácil silêncio de qualquer palavra
não dita, não pensada, não idealizada
deste combate diário
entre o tédio e a alegria
entre o real e a fantasia
enquanto o poema cava
o árido chão da poesia
palavra, difícil palavra
no verso ainda mínima
que nasce, rosa tranqüila
em meio a um deserto
de úmidos sonhos vazios
o poema jamais cessa
seu trabalho inútil e incessante
ainda não concluído, persistente
que cruza a manhã iluminada
enquanto surge o dia
o poema atravessa
lâmina em brasa
a pele do silêncio
o núcleo do nada