Tempo

Compungindo, submeto-me aos fragmentos de algo que não existe

Deixo-me negacear por relógios e calendários,

e me pego crente da mentira repetida muitas vezes

Explico: dentro do sonho que é a vida não se sustenta a existência

do que se convencionou chamar de horas, minutos e segundos

enclausurados em números e nomes fraudulentos

O tempo escoa, singularmente,

ao longo da jornada do planeta e sua ingente solidão,

concubinado aos preceitos da natureza

O tempo nasceu sofisma sob o som e as luzes do Big Bang

e dissipa-se mística e impunemente

A elucubração mecânica e racional

de um tempo retalhado e medido

mensura meu desatento sofrimento,

reduz a minha essência à violência

de um tempo urdido, falaz e mordaz,

encarcera as minhas ações,

enrodilha e cerceia a multidão que há em mim,

me cobre de ansiedades,

me exila de mim mesmo,

açodando a minha morte,

e morro,

morro tantas vezes quantos forem os meus sonhos surrupiados

pelo engodo do tempo

Perco-me na falácias das horas

Pego-me perplexo diante do anacronismo

de um passado presente no futuro,

de um futuro caminhando tão igual para o passado

Moinhos de tempo giram sem se preocupar com o tempo,

giram ao vento

e cospem o matraquear dos relógios

e o silêncio inacabado das ambulas ignaras das ampulhetas

Moinhos de tempo contra os quais eu luto e reluto

na minha quixotesca existência,

os olhos em fuga,

pasmo e cronofóbico,

com medo da sombra que vai subindo pelo muro e levando a tarde consigo

O tempo despótico e inverossímil me cerca

e avança

testando a minha angústia e solidão

como se alhures houvesse o infrangível passado,

um presente a lapidar,

o inescrutável futuro

O tempo arvora-se senhor do meu coração trespassado pelas luzes da manhã

Luzes que permutam noites em dias

neste planeta de 7 bilhões de discípulos (ou algo parecido com isto), girando, girando,

independente do fim e da fome metafísica do homem,

insolente,

alheio aos calendários e relógios

São quase 7 bilhões de incautos vivenciando o mesmo engano,

com seus segundos inventados,

a roer os dias e as almas

Segundos espevitados,

maquinados,

criados,

mal criados,

numa ilusão delirante, difundida e aceita

sob precária e incognoscível explicação.

Na tela branca da tarde

o horizonte se desvela em laranjas,

vermelhos, amarelos, lilases,

o dia deposita seus pincéis,

a ave busca seu ninho,

os passos do dia buscam a noite,

meu medo busca outro ser numa espera atemporal

num acontecimento sem hora ou dia agendados

Testemunha do engano vejo

o sol (dia) preceder a noite,

ou é a noite que precede o dia

Quem puder que me responda

A noite, amorosamente,

esbate-se e dá continuação ao dia,

que não é dia primeiro, nem é dia 16 ou 30,

nem á março, nem setembro

É dia!!! Apenas dia

Assim como a noite é noite, apenas noite

E se manifestam numa sucessão de momentos

que nada têm a ver com segundos, horas,

com dias num calendário imposto e impostor

O tempo é esta convenção espúria,

derrisória invenção (des)humana,

minutos, segundos emergindo do mundo dos conceitos,

com a mesma lógica da mente que um dia pensou a pedra ou a flor

materializando-se em esquizos e torpes senzalas

desta sísifa escravidão

O tempo é esta perversa e mofina loucura embalada em segundos,

minutos e horas

A alegoria do tempo contempla o espasmo da lua

e a precisão do sol

num maniqueísmo de luz e sombra

O nascer poderia ser o início do meu dia e o morrer o ocaso deste mesmo dia

Quanto tempo se passou entre um e outro fenômeno?

Onde eu estava entre o tic e o tac

Não foram dias nem horas

Passou-se uma existência

O deslindar de um segredo

O tempo existe?

Há o momento de plantar,

o momento de colher,

o momento da chuva ou do estio,

aquele instante do cio,

o momento peremptório da sina,

o momento das pragas e dos males pervagando os mistérios,

infectando e devorando os sentidos

Por mais que eu procure não consigo encontrar

a hora exata de amar,

de ser feliz,

de compor uma música,

de fazer e fazer-se poesia,

de visitar um amigo,

o tempo exato pra alegria

para se locupletar e se achar na liberdade,

para viver-se a utopia,

para ver a flor nascer do friável teorema do dia

que se quer esquartejado

Há tempos anacrônicos de paz

onde voam colibris e pequeninas flores sem nome,

de todas as cores,

cobrem o chão

e tempos infindáveis de guerras

com seus cogumelos pairando sobre nossas cabeças

Há o tempo meretriz

o qual desfruta de mim e pelo qual sou pago

tendo vendido, assim, os melhores anos da minha vida

em nome da minha usura

Mas, o tempo, assim, esquartejado não existe,

não me ilude e não me engana

o tempo hora, minuto, segundo

o tempo, empilhado nos relógios,

asfixiando o mundo

em ano, mês e semana

é, destarte, uma subvertida doença humana