Anda no mundo a cegueira

Anda no mundo a cegueira

como labaredas acesas correndo no mato seco

Anda no mundo tanta certeza que chega a alumbrar a luz,

que chega a apeà-lo da cruz

Andam meus olhos tão cegos

Meus olhos encobertos por sofismas já não veem

os silogismos e as premissas que me exilaram de mim

Não tenho tempo nem verve para duplicar ouro qual um Zósimo

Muito pouco posso fazer pela sua dor

Para mim, impenetrável, indefensável, incolor

Fecho meu coração para o mundo e suas mazelas

Ando cego e hipócrita

Arrogante e falacioso

Indiferente e apático

Cuidando do próprio umbigo, e olhe lá

Não me comovem as chagas abertas em tantos Cristos,

de tantas igrejas e capelas,

de tantas ruas e vielas

Tão cego anda o meu coração

Que já não vê o que via o meu coração de menino

Que já não cantarola a música que o vento sugere

Que já não lê o poema

Que já se esqueceu do bairro da infância

Que já não se comove com a amorfa vida das ruas

Que já não se contorce ao ver e saber as guerras

Meu sentimento fez-se insondável madrugada

A transcendência do nada

Este desespero silencioso e afônico

Esta ironia escorrendo dos atos

Menoscabando o pranto alheio por não ser minha a dor

Andam moucos meus ouvidos

Andam sem fé as minhas mãos

Que já não se postam para a oração

E tateiam na escuridão em busca de uma possível absolvição e salvação

Na boca este gosto de mágoa, fogo, cinza e morte

Sinto no ar o cheiro do rastilho vermelho da bomba

Vislumbro no horizonte o seu cogumelo

Onde termina o ser humano e começa a bestialidade?

Minha consciência já não sabe

Meus sentidos já não sentem

Já não me são de grande valia

Estou anestesiado

Durmo o sono insonte e desatento dos justos e éticos

Coisas que não se vê muito por aqui

Ganho meu salário independente da tua fome

Independente se amas ou odeias a tua vida e as coisas da tua vida

Um dia havemos de enxergar quem nos marioneta,

nós, os fantoches, vítimas das injustiças sociais,

com nossos ventres galados e nossos sonhos banais

Um dia, quem sabe, um dia

Quando Godot chegar

Quando voltar o que ia

Quando a canalha partir

Quando chegar a alegria

Quando vier o amor

Quando viver for fantasia

Quando me afagarem a memória as mulheres que amei

Quando brotarem as flores ao meio-dia

Quando a saudade for tanta

Que esquecer não esquecia

Enquanto a caliça dos sonhos se revelava na réstia de luz

Enquanto meu mundo se desfazia

Quando não mais jogar jogos de poder

E o medo de mim se apiedar

Vou viver minha utopia

Aqui ou em outro lugar