A imagem e a fera

A realidade e a imagem

O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva

E desce refletido na poça de lama do pátio.

Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,

Quatro pombas passeiam.

De: Bandeira, Manuel. In Antologia Poética. Editora Global, 2013

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A face emersa no espelho,

Esta poça de lama humana e silente,

Com seus olhos de prata e negrume,

Vai, olha, sugere e cospe

O conceito e a imagem

De uma face inerte e rubicunda

Seria eu esta imagem no espelho

Trancafiada, inclemente?

Cá dentro a fera incriada ruge

O que o espelho não sente

Por mais que eu me olhe

E olho

E quanto mais olho

Mais me duvido, afinal

A luz me cria e reflete

Num instante que só existe no espelho

Quem foi aquele que me olhou

Do espelho sugerindo ser eu, ou,

Pelo menos, um pedaço de mim?

O espelho não tem respostas

Nestes 55 anos em que espelhos vários

Já mostraram e esqueceram o meu rosto

Mal eu lhes viro as costas

Da fera, então, nem sinal

Está imune aos espelhos

Só se mostra à aflição e à ânsia

Deste José animal

A fera é Sahelanthropus tchadensis,

Homo sapiens,

Neanderthal?

Fala algum dialeto?

De onde vem este rosnar gutural?

Vem de um mundo primordial

De mágoas e medos

Onde a caça e o caçador se fundiram

na alimária atual

A fera não se reflete

Nem na poça de lama

Nem nas águas de qualquer lago

Ou rio dissoluto nas próprias margens

Antes de cair no mar

A fera morde e tritura

E resfolega e devora

A fera é esta fissura

Entre a imagem no espelho

Amantado

E as pombas que não vejo

Passeando do outro lado

No nem aqui, nem agora

O dia arde

Arde a sombra duvidosa e fugidiça

Do arco que se desenha no horizonte

O vento dissolve-se solitário

No planger de alguma flauta

Não há motivo para saudades

A fera se erotiza, acasala e procria

No âmago impenetrável do homem

Na ignara persona do homem