O inimigo

Salmo aos inimigos

Quando jovem

lendo os salmos de David

não entendia por que o rei-poeta

gastava espaço em suas preces

pedindo proteção contra os inimigos.

Não sendo rei de nada, digo: Senhor!

- sem permitir que em sua fúria me destruam-

preservai meus inimigos.

Eles me ensinam

o que em mim devo evitar.

Dizem-me coisas

que não dizem os que me amam

por muito me amar.

Dai-me novos inimigos, Senhor!

pois para cada um que me intercepta os passos

sempre amigos novos

me abrem os braços

e em cada inimigo descubro

embutido

e pelo avesso

um amigo

trazendo no punhal

guirlandas que nem mereço.

Affonso Romano de Sant'Anna.

In Vestígios. Editora Rocco, 2005.

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O inimigo é a sombra calada

o cisco que me cega os olhos

durante a caminhada

para que eu não vá por aqui,

para que eu não me perca

nem afunde na greda macia

dos desejos e delírios do poder

É o deserto insolúvel

É a imagem no sonho

deslindando a madrugada

É este silêncio que evola-se

pelas frestas da janela

sem dizer a que veio,

pra onde vai

O inimigo é o espelho mais fiel

dos dramas que escondo de mim

do que não quero ser e já sou

É a fuga patética de um céu

onde os anjos transbordam

em mil faces

passíveis cada uma

de ser o meu "Eu" perdido

ser meu pecado e a dor

de não o ter vencido

O inimigo é a cantata

e a serpente

É o conto de fadas,

a estória indecente

a pulular diante da gente