Hora de ir embora

Na tarde morna e languida

sob um céu vermelho que transpassa

os jardins

a flor floresce

na praça

distraída de quem passa

O dia caminha para a ilusão do fim

Aperto o passo para que o fim

(ilusório e atemporal)

não chegue antes de mim

ao destino fatal

que desconheço

Entro em casa deixando as reentrâncias

da vida lá fora onde o mar marulha

Refugio-me na ilha dentro da ilha

Refugio-me nos meus livros

Meus livros

eu os abro como cortinas de teatro

Sinto-lhes o cheiro inefável do papiro impresso

Sinto a maciez da sua alma branca

Alumbro a minha alma no que eles têm pra me dizer

Ouço-os,

arrebatado por este ajuntamento de "as" e "os"

e arrasto meus dedos pelas páginas,

meus olhos indagam o porquê da lágrima

e a palavra me encanta, me enternece,

abre chagas, me revolta o coração

Me calo, sou solidão

Amadurece a noite na ilha

prelibando os sonhos que nos séculos aguardam por mim

Uma mariposa se debate na tela da tv,

fascinada pela luz,

cansada de procurar a janela por onde entrou,

mas impendente ao fascínio da luz,

presa ao engano da luz,

morrerá supondo que só a luz é caminho

e ignorando a escura e múltipla liberdade lá fora

Enquanto a noite amadurece,

enquanto à sorrelfa a lua acontece

o eco e a estesia delirante das palavras

lembrando um melancólico blues me traz

dois ou três amores inenarráveis,

o beijo terno e longo,

o cárcere de uns olhos negros,

a música vindo de um rádio,

e um amor de menino que era a minha achação

E vou caminhando caminhos solertes,

hora lento,

hora célere

Por vezes altivo e garboso,

por vezes olhos no chão

olhando de soslaio a miséria

enquanto dilacero meu pão

E quando menos se espera

sem aviso, pressentimento ou demora

já é hora de ir embora

Os dias caminham para a ilusão do fim

Aperto o passo para que o fim

(ilusório e atemporal)

não chegue antes de mim

ao destino fatal

que desconheço:

quando eu nasci

nasceu o dia comigo

quando eu morrer

anoiteço