Muitos são os sonhos

Muitos são os sonhos

Ser outro

Ser poeta

Ser bispo

Ser rei

Ser a grei

Ser homem

Ser gente

Ser anacoreta

Ser a sorte

Ser a vida

Ser a morte

Ser pássaro

Ser serpente

Ser o soldado possesso

Ser o juiz

Ser processo

Ser o réu

Ser morto

para ser anjo em um céu

Poucos são os dias

para responder a tanta pergunta

para ouvir o silêncio da alva da alma

enquanto se morre sitiado pelo engano

aleivosia umbrática de um outro dia

de outra(s) vida(s)?

Muito o tempo gasto

para construir

e defender a persona

e as tantas máscaras

com as quais simula-se a vida

e esconde-se e sufoca-se o Eu

serpente

inoculando-se de veneno

oráculo

silencioso,

entre o sonho e a razão

Lá fora a noite acende os lampiões

e a chama de pedra

Inicia-se, assim,

mais um fim de dia

Gemem os ventos antes do sono

O sono espera enquanto deambulo

da infância à morte,

da total covardia

ao mais intemente ato de coragem

Muitos são os sonhos

Tantas as portas

Antigas

Encobertas pelas sombras

Tantos os desafios

Sentinelas

Perguntas que nunca serão feitas

respostas que nunca acenderão

o fogo para iluminar

a noite da existência

Parca é a vida

e seu pulsar inconstante

e seu arrítmico segredo

e seu imanente medo,

lento e arraigado

que escorre pela face

e cai em gotas

manchando os desertos

habitados pelo tempo

que se autofagia

lenta

e permanentemente

Quantos agostos atravessei?

Quantos outros agostos atravessarei

sem que eu saiba

da montanha o ventre, o olor?

Meu nome é igual ao de tantos outros Josés

Nada me cura da febre

e do muito barro que comi

e que me trouxe até aqui,

por todo este tempo de ilusão,

o mar silente,

o caminho iluminado

pelas luas antigas

deixando um rastro de prata

na superfície azinhavrada do espelho

onde velo a cada instante

tudo aquilo que eu era antes

e somente antes do fim